A alma do grande escritor era vermelha
O aniversário da morte de Zola foi comemorado em França com dignidade. Além de sessões públicas que tiveram lugar em todo o país, a exposição na BnF, aberta ao público até ao próximo dia 19, atraiu milhões de visitantes. Em toda a França, Zola foi recordado, não só pela sua obra literária mas como um desassombrado polemista capaz de expor se, totalmente, pelas ideias que defendia e pelas lutas mais justas em que entendia participar. Também em Portugal, este aniversário marcante não passou completamente despercebido. Mas recordemos a maneira como o brilhante escritor que se apaixonou pelas causas das massas de trabalhadores ofendidos era dada a conhecer ao povo no Portugal salazarista.
O regime procurava evitar que Zola fosse conhecido e discutido, particularmente entre a juventude. Zola não podia ser proibido, tal como Victor Hugo ou mesmo Balzac. As suas obras estavam editadas e tinham público permanente. Mas na velha Escola Comercial de Ferreira Borges dava aulas de «Religião e Moral» um feroz inimigo das ideias progressistas, um carnívoro propagandista da pessoa de Salazar e do regime do Estado Novo. Chamava se Pedro Garcia Anacleto. Os alunos, que o odiavam, segredavam lhe: «Sabe o senhor doutor que ando a ler Zola?». Ao que ele, revoltado, respondia: «O que vocês têm de aprender é a obra daquele que por nós sofre no seu gabinete de trabalho. Aquele que labuta pela renovação da nossa marinha de guerra. Não vedes, no Tejo, aquele contra torpedeiro, o Dão? Foi Salazar quem o mandou construir ...»
Os jovens, ripostavam: «Senhor doutor, ando a ler o Germinal». A fúria que o «moralista» não era capaz de esconder, atemorizava. Mas os alunos avançavam: «Senhor doutor, aquela cena no fundo da mina em que a Catarina, enfim...» O castigo produzia se, imediatamente. Quem não aguentasse a velocidade do ditado era expulso da aula e denunciado ao director, Eurico Tavares Moreira. Foi assim que este colaborador do Avante! se relacionou com Emile Zola.
Obra de Zola, obras na Biblioteca
Na hora do 200.° aniversário da morte do imortal escritor francês é justo afirmar se que ele ajudou alguns portugueses a conhecer o mundo abrindo-lhes a janela da verdade. E ficava a perceber-se que, para além dele, existiam outros escritores e outras formas de conhecimento da luta dos homens a que não se podia ter acesso naquele Portugal de fins dos anos quarenta. Os funcionários da Biblioteca Nacional, então precariamente instalada no Largo da Biblioteca Pública, quando confrontados com pedidos de leitura de obras que o Estado Novo não queria que fossem lidas, pronunciavam se, sublimemente: «Lamentamos, mas esses livros estão numa sala a que não podemos chegar devido às obras». Aquela Biblioteca, andava sempre em obras. Mas, graças a Zola, em cujos livros resplandecia a sua alma vermelha, entrámos na república do conhecimento. E quando pessoa amiga nos levou a casa de Aquilo e lá vimos a imponente biblioteca pessoal, jurámos a nós próprios com toda a convicção possível: «Ainda hei de ter a minha biblioteca!». Obrigado Zola! Obrigado Aquilino!
O «Affaire Dreyfus»
Os serviços secretos franceses anunciaram ter descoberto num cesto de papéis do adido militar alemão em Paris, Schwartzkoppen, uma carta misteriosa, não assinada, anunciando que seriam enviados em breve aquele diplomata certos documentos confidenciais relacionados com material de guerra inovador mas ainda em fase de estudo. Logo foi acusado o capitão Alfred Dreyfus, um oficial de cultura judaica, de ser o autor da carta. Nestas inacreditáveis condições, Dreyfus foi julgado e condenado em Dezembro de 1894 e deportado para a tristemente célebre Ilha do Diabo.
Um seu irmão, Mathieu, com o apoio de Bernard Lazare, escritor e jornalista liberal, de Clemenceau, então colaborador de «l´Aurore» e de Joseph Reinach, político dos meios gambetistas próximo de «le Siècle», iniciou uma campanha destinada a desmascarar os autores da conspiração. Seria, contudo, o artigo de Zola, dirigido ao presidente da República (13.01.1898) que levaria a adormecida consciência do povo francês a despertar. Nesse manifesto, Emile Zola atacou, violentamente, o Estado Maior do Exército francês. Isso valeu-lhe o exílio e a irradiação das listas da Legião de Honra.
Perante enorme pressão da opinião pública e a recusa do ministério da Guerra a pedir a revisão do processo, o governo acabaria por encarregar o Tribunal de Apelações de fazê-lo em Setembro de 1898. Finalmente, em Junho de 1899, o condenado comparecia perante o Conselho de Guerra de Rennes enquanto a França tremia atormentada pelos fantasmas do racismo, do anti-semitismo, do ultra patriotismo e, até, das guerras de religião que se julgavam firmemente depositadas no passado. Procura-se uma saída legal. Dreyfus é, novamente, condenado pelo Conselho de Guerra, mas, desta vez, com atenuantes. Seria só em Julho de 1906 que o Tribunal de Apelações consideraria nulo o veredicto de Rennes para, de seguida, ordenar a reabilitação de Alfred Dreyfus com promoção ao posto de chefe de batalhão e condecoração com a medalha da Legião de Honra.
A publicação por Schwartzkoppen de uns «Carnets», em 1930, esclareceria tudo. A maquinação destinada a arruinar Dreyfus fora imaginada no Estado Maior por um oficial de origem húngara, Esterházy, e pelo coronel Henry que se afirmava desejoso de proteger a honra do exército dado que a 1.ª Guerra Mundial lhe parecera inevitável em condições desastrosas para a França como, afinal, se verificou. Quando os «Carnets» de Schwartzkoppen foram publicados a guerra já se distanciava no tempo, mas a França continuava a torturar-se porque Waterloo (1815) tinha acontecido.
Cronologia
1840: Nascimento de Emile Zola em Paris. Passa a infância em Aix-en-Provence onde trava relações com Paul Cézanne;
1862-66: Após dois anos de boémia literária em Paris, entra para os quadros da livraria Hachette; dedica-se, depois, ao jornalismo e às letras em geral; colabora nos jornais «Le Figaro», «L´Evénement», «Le Gaulois», «Le Rappel», «La Tribune», «La Cloche»; torna-se admirador de Balzac, de Flaubert, dos Goncourt; em trabalhos de crítica de arte defende Manet e outros artistas que, mais tarde, passaram a ser conhecidos como «impressionistas»: Monet, Renoir, Bazille, Pissaro...;
A actualidade política impele-o a tomar partido contra o regime imperial;
publica «La Confession de Claude», a primeira das suas obras em que se nota começar a dissipar-se o romantismo antes demonstrado;
1867: Publica «Therèse Raquin» e «Les Mystères de Marseille»;
1868: Após a publicação de «Madeleine Férat» inicia uma obra geral, um tanto no estilo da Comédia Humana, que o imortalizaria - «Les Rougons Macquart», um conjunto de vinte romances em que traça e desenvolve a história natural e social de uma família, sob o 2.º Império;
1877: Livre das ilusões que o haviam deslumbrado, desnuda em «l´Assomoir», a cidade popular que é Paris e surgem, depois, «Germinal» (1885), «A Obra» (1886), «A Terra» (1887), «A Besta Humana» (1890), «O Dinheiro» (1891) entre outras obras monumentais que enriqueceram a literatura francesa e mundial;
1896: Torna-se claro que Emile Zola sofrera a influência de certas teorias inspiradas por Fourrier, não demonstrando suficiente interesse pelas grandes e fundamentais questões da Economia mas acreditando que a educação dos homens podia conduzir ao progresso da sociedade e ao desvanecer da luta de classes;
1898: A 13 de Janeiro, publica em «l´Aurore» o célebre manifesto «J´Accuse» em que afirma a inocência do capitão Dreyfus e denuncia a acção dos seus acusadores; este gesto de Zola faz nascer um debate profundo em toda a sociedade francesa que provocaria a revisão do processo.
O escritor paga à justiça reaccionária o preço do seu desassombro e é condenado a uma pena de um ano de prisão e 3 000 francos de multa por ter exposto a hipocrisia do sistema judicial e a má fé do Estado Maior do Exército; partiu para o exílio em Inglaterra a 18 de Julho de 1898 e lá permaneceu até 5 de Junho de 1899;
1902: A morte do grande escritor (por suposta asfixia devido a gases recebidos através de uma chaminé) continua a ser considerada como um mistério nunca resolvido ou, talvez, uma vingança levada a cabo pelos seus inimigos.