Mudança revolucionária?
Discute-se, com apreensão, o sentido das mudanças propostas pelo Governo Lula. Serão cosméticas, como as encaminhadas por Fernando Henrique nos seus 8 anosde mandato, ou revolucionárias como a população espera? As alianças políticas estabelecidas pelo PT com sectores empresariais do Brasil não assustaram o povo que sabe não dispor ainda de força organizada para pretender a implantação de um governo popular nos moldes das revoluções socialistas do século XX.
A sensibilidade dos trabalhadores brasileiros leva-os à compreensão de que o inimigo principal do desenvolvimento nacional se situa no poder internacional de controle exercido por FMI, BM e governos autoritários, como o dos Estados Unidos e dos seus aliados, através de pressões comerciais e ameaças militares implícitas ou explícitas. Os empresários nacionais são, no presente, vítimas dos desvarios da globalização que lhes impõe uma camisa de forças estabelecida pela subordinação ao dólar e ao mercado que só é livre para os grandes grupos económicos. Aos poucos caem as máscaras das velhas campanhas anticomunistas que pretenderam eliminar do vocabulário político o conceito de imperialismo que tão bem explica a grande ameaça que paira sobre a América Latina, todo o terceiro mundo e até mesmo sobre a Europa. Como no momento em que a guerra nazi fez surgir a aliança entre povos que defendiam diferentes processos de democratização, hoje o imperialismo chefiado por Bush (que não titubeia em mandar matar o presidente do Iraque para alcançar os seus objectivos expansionistas) promove a necessária aliança entre todos os democratas do mundo.
Vivemos uma guerra que explode de diferentes maneiras dizimando as populações: com o pretexto do terrorismo nos países árabes, pela via da fome no terceiro mundo (deixemos de vez o eufemismo do termo países em vias de desenvolvimento), pela droga e pela cultura da violência que domina em todos os países várias gerações em idade de trabalhar. As reformas cosméticas pretendidas pela social-democracia, como por Fernando Henrique no Brasil, ocultaram esta realidade com a exibição de pinturas douradas que não suportaram as primeiras chuvas ou o sol forte da realidade. É que na visão voluntarista que cultivaram, a aliança com a cúpula do imperialismo garantia um espaço de liberdade protegido (comprado a alto preço, melhor dito). Debaixo do guarda-chuva imperial, pagando o dízimo, pretendiam fugir ao saque indiscriminado que destroi os caminhos do desenvolvimento para os países pobres.
O custo da protecção imperial
O Governo de FHC ficou marcado pelo grande apoio que deu aos bancos no Brasil com o pretexto de salvar as finanças dos seus clientes. No ano de 2002, os lucros alcançados pelos 50 maiores bancos que operam no país desfalcado, onde impera a fome, foi de 16 mil milhões de reais, sendo que os bancos estrangeiros duplicaram os seus já suculentos lucros anteriores. A liberdade na aplicação de taxas, juros exorbitantes e tarifas bancárias absurdas, promoveu a falência de milhares de empresas com o consequente desemprego e endividamento da população de classe média, condenando as camadas mais pobres à exclusão social. A inflação chegou a 12% ao ano, deixando longe a remuneração dos depósitos populares e reduzindo o valor dos salários vigentes.
A alienação do património nacional – rede ferroviária federal, bancos estatais, a grande empresa Vale do Rio Doce que alcançava um lucro anual de mil milhões de dólares e foi vendida por 3 mil milhões, empresas de produção e distribuição de electricidade e gás, comunicações e transportes – descapitalizou o país e desnacionalizou o controle da infra-estrutura brasileira, inviabilizando a autonomia construída no passado. O controle estrangeiro da vida quotidiana dos brasileiros traduz-se em desmandos insuportáveis pela ausência de fiscalização no cumprimento dos contratos e compensações financeiras autorizadas pelo Governo para salvar as empresas das crises (como o «apagão» que penalizou a população com multas e cortes no fornecimento de energia durante metade do ano findo).
A lista de infortúnios é exaustiva, sempre comprovando que o Governo do Brasil se aliava aos investidores estrangeiros e nunca ao povo brasileiro. O coroamento desse processo de capitulação foi registado pelo depoimento do General Andrade Nery, prestado aos parlamentares em Brasília, sobre a utilização, por técnicos norte-americanos, de equipamentos que, através de satélites, interferem no comportamento psicomotor de pessoas na multidão, instalados no Centro Espacial da Base Militar de Alcântara – Maranhão – cedido aos Estados Unidos (conforme divulgação no Jornal O Farol, nº 96 de Novembro/2002).
Muito já se escreveu sobre o modelo neoliberal cuja falência destronou a social-democracia em quase todos os países, deixando uma herança fatídica de desemprego, destruição de projectos de produção, marginalidade e desespero de milhões de pessoas, aumento da criminalidade, inoperância dos sistemas judiciários e inoculação de uma cultura alienada que se apoia na violência e no individualismo exacerbado.
É o prémio Nobel de economia em 2001, Stiglitz, quem afirma no seu livro «A globalização e seus malefícios»: «A globalização hoje não está dando certo para muitos dos pobres do mundo. Não está dando certo para a estabilidade da economia global. A transição do comunismo para uma economia de mercado foi tão mal administrada que, com excepção da China, do Vietname e de alguns países da Europa Oriental, a pobreza aumentou enquanto a renda diminuiu». E o historiador Eric Hobsbawn comenta: «A vitória de Lula é um dos poucos eventos do começo do século 21 que nos dá esperança para o resto deste século. A eleição de Lula é uma consequência directa da aplicação de reformas do FMI, do fundamentalismo de mercado, ao Brasil. Foi a resposta de brasileiros de todas as classes ao que se costumava chamar de Consenso de Washington. Quanto mais as pessoas diziam que o mercado iria operar contra se votassem no PT, mais as pessoas viram uma boa razão para votar nele. É a prova de que o tipo de globalização de Washington produz maciça reacção política e social contrária».
Somando-se a falência do modelo neoliberal com a incompetência (ou ambição individualista) dos condutores da globalização, e reconhecendo-se que os movimentos sociais na América Latina (e um pouco por todo o mundo) adquiriram a dinâmica e a consciência herdadas dos partidos de esquerda abalados pelos efeitos da implosão do socialismo na Europa, tem-se um quadro realista da situação política, hoje favorável ao Brasil e ao Equador. Como numa reacção química, os múltiplos elementos que já interagiam neste caldo de cultura política resultante da intenção decretada do «fim da História», somaram-se no surgimento de um novo ciclo que prenuncia a transformação do sistema.
Revolução?
O sentido revolucionário ou reformista dependerá da participação popular através dos seus mais organizados movimentos que caminharão mantendo coerência ideológica e estratégia de luta de classes. O MST já fez esta afirmação: conta com a compreensão do Governo para a proposta de Reforma Agrária que faz, não vai promover ocupações «como se fossem piqueniques inconsequentes».
Lula, ao receber o relatório do grupo que participou da transição governamental, revelava crescida preocupação com o «campo minado» que recebe de Fernando Henrique. A sua constatação de que só foi eleito porque a situação havia chegado a um nível insuportável para os candidatos de centro-direita, atraiu mais ainda a confiança popular. O povo está cansado de mentiras e promessas irresponsáveis que mistificam a realidade, prefere a lucidez de quem conhece a miséria e mete ombros para vencê-la passo a passo.
Serão anos difíceis, mas isto anima os milhões de brasileiros que nunca conheceram outra situação e agora reconhecem no presidente um seu igual que tudo fará para que a riqueza nacional seja bem dividida. Sente-se estimulado a trabalhar, a produzir, a combater os erros e os vícios que proliferaram com os governantes que buscavam a sombra de protectores estrangeiros. Lula e seus colaboradores mais directos olham os problemas do Brasil de dentro para fora, com conhecimento de causa, procurando as soluções também a partir dos recursos humanos e produtivos internos. São capazes de dialogar com adversários sem perder a dignidade, que é nacional, porque o seu vínculo ideológico se enraíza nas camadas populares e na inteligência progressista nacional.
Os programas de acção de cada Ministério serão revolucionários se nascerem do traçado de uma estratégia coordenada com as orientações centrais, não como as versões continuistas de burocracias consolidadas a serviço da promoção do presidente como era habitual. Não mais seremos obrigados a suportar as vergonhosas frases: «Estou adorando ser ministro», de quem era responsável pelo turismo nacional nas comemorações dos 500 anos. Os futuros ministros indicados por Lula demonstram ter consciência de que serão investidos de uma tarefa espinhosa e não de uma promoção social e económica. Gilberto Gil, indicado para o Ministério da Cultura, chegou a demonstrar uma possível fragilidade de consciência ao levantar a dúvida sobre a sua capacidade para suportar uma redução de rendimentos e a interrupção da sua carreira de cantor. O povo não gostou e disse, e Gil reconsiderou o seu papel na história brasileira não como um cargo da indústria cultural. Assim será sempre e Lula prometeu ser um eterno vigilante. Não é fácil mudar os hábitos e, sobretudo, as consciências dos que estavam surfando na superfície em companhia da elite. Trata-se de uma mudança revolucionária da cultura social.
As concepções estratégicas são discutidas tendo em vista a defesa nacional e o conceito de soberania; o projecto de desenvolvimento e a fome-zero; a íntima relação entre saúde e infra-estrutura; entre cultura, comunicação e educação; entre produção, armazenamento e transporte; entre industrialização e protecção ambiental; entre endividamento e investimento produtivo; entre vida urbana e habitação; entre emprego e organização do trabalho; entre o desporto e a consolidação da cidadania. Os vários debates travados sobre todos esses temas, antes deixados à margem como mero interesse intelectual de investigadores, desde os primeiros dias da eleição de Lula começaram a ser reunidos e divulgados. A participação dos que querem reconstruir o Brasil promete ser vigorosa para que seja possível até mesmo fazer o impossível.