Que viva o Cinema!

Sérgio Dias Branco

A relação entre o que está dentro e o que está fora é dialéctica

No início da década de 1930, o grande cineasta soviético Sergei M. Eisenstein dedicou-se a uma co-produção entre os EUA, o México, e a URSS sobre a revolução mexicana e os seus antecedentes, ¡Que viva México! Não a concretizou, mas naquilo que filmou ficou inscrita a energia celebratória do cinema, encontro vivo de olhares criadores de artistas e espectadores, a tomar consciência da sua condição histórica (de classe), fazendo-se força popular e sujeito da história. Assim é também no CineAvante!, que decorre no Espaço Central da Festa do Avante!, este ano com climatização para maior conforto dos visitantes. Aqui, o cinema não aparece como um território da produção artística recortado e isolado da história social e das lutas pela libertação da exploração humana e pela democracia plena. Aqui, mostra-se um cinema embrenhado no mundo, dele emergindo, a ele se dirigindo, com ele construindo sentidos, de forma crítica e criativa.

Eisenstein foi ao México filmar outra cultura, mas filmar também a mesma história humana movida pelo desejo intenso de emancipação. No ano em que celebramos o centenário da Revolução de Outubro, o CineAvante! escolheu Oktyabr (Outubro, 1928) para festejar esta data que permanece uma semente do futuro. Eisenstein e Grigori Alexandrov realizaram esta obra no contexto das comemorações do 10.º aniversário da Revolução. Combinando a encenação com um sentido documental com a experimentação na montagem visual, Oktyabr narra a queda da czarismo em Fevereiro de 1917 até ao fim do governo provisório em Outubro do mesmo ano. É um filme revolucionário para celebrar a Revolução. O cinema soviético produzido na Rússia legou-nos um valioso conjunto de curtas-metragens de animação que a Monstra – Festival de Animação de Lisboa ajudou o CineAvante! a homenagear. Este programa inclui filmes do satírico Fyodor Khitruk e do perspicaz Eduard Nazarov: Chelovek v ramke (O Homem na Moldura, 1966), Vinni-Pukh (Winnie the Pooh e as Abelhas Desconfiadas, 1969), e Ostrov (A Ilha, 1974) do primeiro e Okhota (Caça, 1979) e Zhil-byl pyos (Era Uma Vez um Cão, 1982) do segundo.

Como já se tornou hábito, a Monstra colabora também com uma selecção de filmes de animação recentes, continuando o trabalho de divulgação do camarada Vasco Granja. A Sessão Monstrinha, dirigida às crianças mas igualmente entusiasmante para os adultos que as acompanham, inclui este ano: o belga Tiribi (Tiribi, a Nova Casa, 2016) de Susie lou Chetcuti, o estado-unidense Eggs Change (Troca de Ovos, 2016) de Hee Won Ahn, o irlandês Bán (2016) de Catherine O’Brien, o francês Celui qui domptait les nuages (Aquele que Domava as Nuvens, 2015) de Julie Rembauville e Nicolas Bianco-Levrin, o checo Pat a Mat ve filmu (As Novas Aventuras de Pat e Mat – O Projetor, 2016) de Marek Beneš, o catalão El niño y el erizo (O Menino e o Ouriço, 2016) de Marc Riba e Anna Solanas, o ucraniano Professionals: Kuhar (As Profissões: Cozinheiro, 2015) de Stepan Koval, o alemão Die Geschichte vom Fuchs, der den Verstand verlor (A História da Raposa que Perdeu a Cabeça, 2015) de Christian Asmussen e Matthias Bruhn, os russos Nemity Pingvin (O Pinguim com Medo da Água, 2015) de Isabelle Favez e Moroshka (Amoras, 2015) de Polina Minchenok, e o argentino El hombre mas chiquito del mundo (O Homem Mais Pequeno do Mundo – O Passo Errado, 2016) de Juan Pablo Zaramella.

No cinema contemporâneo, o britânico Ken Loach continua a retratar as angústias e os combates da classe trabalhadora. Em I, Daniel Blake (Eu, Daniel Blake, 2016), Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado, Loach dirige o seu olhar atento para um marceneiro, doente, que procura o apoio que lhe é devido pela Segurança Social. Na travessia por uma burocracia desumana, será acompanhado por Katie, uma mãe solteira de duas crianças, obrigada a fazer de tudo para as poupar a privações.

O CineAvante! olha para fora, mas olha sobretudo para dentro, recolhendo pistas para entendermos a realidade portuguesa através da produção cinematográfica nacional. A Floresta das Almas Perdidas (2017) de José Pedro Lopes é um filme de terror que se debruça sobre a questão do suicídio, com estreia comercial marcada para 12 de Outubro. Duas curtas-metragens documentam a história dos trabalhadores em Portugal. A Revolta do Leite (2017) de Eduardo Costa descreve a revolta de 1936 contra o controlo económico monopolista da produção e venda de leite. Trama (2014) de Luísa Soares investiga na primeira pessoa as mulheres operárias da desmantelada indústria têxtil de Seia. A longa-metragem documental Volta à Terra (2014) de João Pedro Plácido mostra uma aldeia no Norte de Portugal, onde se pratica agricultura de subsistência e a emigração tem reduzido o número de habitantes. São Jorge (2016) de Marco Martins testemunha os anos duros de agressão da vigência da troika e do governo liderado por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. No centro deste drama está um lutador de boxe desempregado, interpretado por Nuno Lopes, papel pelo qual foi galardoado no Festival de Veneza. Estilhaços (2016) de Guilherme Santa Rita fala-nos das dificuldades financeiras e dos dilemas de uma família.

A relação entre o que está dentro e o que está fora é dialéctica e um dos filmes que melhor o demonstra é Treblinka (2016) de Sérgio Tréfaut. Trata-se de uma viagem de confronto com a memória que o futuro reclama que não se apague e com a presença no imaginário colectivo dos campos de extermínio nazis, em particular na Polónia. Além de dar a ver filmes e fomentar o diálogo entre espectadores, artistas, e programadores, o CineAvante! propõe este ano um oportuno debate sobre o cinema em Portugal que relaciona as obras com as condições concretas da sua produção.




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