Fogos, dramas e mistérios

Correia da Fonseca

Desde há já muitas semanas que estão os portugueses a viver, directamente os que residem nas áreas afectadas, via TV os afortunados que podem seguir os acontecimentos apenas pela televisão, o surto de incêndios florestais que transformou algumas zonas do território nacional numa espécie de gigantescos archotes quase impossíveis de apagar. Começou em Pedrógão, como bem nos lembramos, e saltou depois para outros lugares do País como uma epidemia sinistra impossível de travar. Milhares de bombeiros e de outra gente corajosa que quer alinhar ao seu lado, voluntários que vêm de outros países numa simpática demonstração de solidariedade internacional, os chamados «meios aéreos» e também os «meios terrestres», tudo e todos têm parecido impotentes para travar o inimigo que parece ceder apenas perante o seu próprio cansaço, se é que também o fogo se cansa de si próprio, o que aliás é improvável. Enquanto isto, como é seu dever e também talvez seu interesse e seu proveito, os diversos canais que enformam a televisão portuguesa despejam nos nossos televisores as imagens de chamas, suor e lágrimas que vêm definindo grande parte da paisagem portuguesa. É como que um país de luto a vestir-se da cor de cinza que as chamas deixam quando enfim se extinguem por penúria do combustível natural de que se alimentam.

Onde se fala de Nero

Entretanto, porventura estimuladas pelo halo de algum aparente mistério que muitas vezes rodeia o deflagrar de incêndios, também pelo elevado número de incendiários ou de suspeitos já detidos, começa a germinar qualquer coisa de semelhante ao que por vezes é designado por «teorias da conspiração». Injustificadamente, entenda-se: os verdadeiros conspiradores neste caso concreto serão o calor mais elevado do que é normal para a época, a baixa taxa de humidade no ar, os ventos peculiares do Verão neste caso cumpliciados com o fogo, de tudo isso nos falando a televisão dia após dia e mesmo hora após hora, aparentemente regalada com a abundância de assunto que vem mobilar-lhe, embora tristemente, os telenoticiários da «silly season». Mas há mais: já que despontam as tais «teorias» e porque é sempre útil entendê-lo, entenda-se de passagem que frequentemente são designadas por «teorias da conspiração» as explicações adequadas e genuínas que certos grupos dominantes não querem ver aceites ou sequer divulgadas. No tempo actual e no nosso largo mundo, podemos colher muitos exemplos disso. De forma alguma será, porém, o caso dos fogos que devoram as nossas florestas, que multiplicam as lágrimas e as amarguras. Tanto mais que o eventual precedente não colhe: Nero tocava lira e cantava enquanto mandava que Roma ardesse, mas não consta que tivesse voz de barítono, pelo que é de todo absurdo e inadequado tentar sequer sugerir paralelos. De resto, somos outro tempo e outras gentes. Investigue-se, isso sim, o que estará por detrás (e por dentro) dos incendiários já detidos, e depois informe-se do resultado o povo sofredor e o povo solidário. Para isso, temos aí a televisão. Que será então, finalmente, de uma preciosa utilidade.




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