A culpa não é do Fado

João Manso Pinheiro

Na sua origem encontramos uma dança dos escravos africanos

Uma pequena sala. Um cubículo, talvez. Escuro e empoeirado, mas que bastava para aquela que era a sua clientela, pouco exigente com limpezas ou o perfil do vinho servido. Vinho que chegava para todos, amontoados em bancos rachados e já com anos de serventia, meio debruçados sobre balcões, peganhentos de mil e um copos, suando o mesmo suor que suaram todo o dia, na fábrica, no barco, nas ruas, a céu aberto, que para tantos era tecto. De entre essa multidão irrompe um grito cantado, sem complexos, desgovernado e livre, um cantar de mulher trabalhadora, de roupa gasta e cicatrizes de golpes de ponta e mola. Olha o Fado.

Mas a verdade é que o Fado não surge daqui. Não é este o grito cru e espontâneo, inicial e inteiro do qual rebentaria a tradição fadista. Este contexto social, da pobreza e da vida das classes trabalhadoras da cidade capital, trata-se apenas de um entre muitos outros, no seu incansável e persistente processo de transformação e evolução.

Na sua origem encontramos uma dança dos escravos africanos, levados (traficados) pela mão do enorme mercado esclavagista para a América do Sul, de nome Lundum. Afastados dos centros culturais colonialistas, é a explosão libertadora que o Fado em si encerra que mobiliza não só os seus pioneiros mas também toda a população trabalhadora, que a espalha e a dinamiza por todo o Brasil. Não tinha regra a cumprir que não o prazer e a felicidade possível, não tinha constrangimentos que não a experiência da vida. Era uma dança de todos, por todos partilhada.

Outro género de canção dinamizava-se pelo país: a Modinha, triste e fatalista, com acompanhamentos simples, muitas vezes bastando uma guitarra, e claro, a declamante voz para se fazer canção.

A Modinha e o Lundum são as chaves mestras para a estruturação deste género musical. O Fado surge desta mescla. Mistura sem arreios nem embaraços, formado e forjado nas vontades das massas trabalhadoras, onde toda a transformação é válida conquanto exprima as mais profundas ambições dos povos que a praticam.

Quando o fascismo, determinado a destruir e controlar todas as formas de expressão populares, apontou as suas armas, foi no Fado que concentrou os seus maiores esforços. Num artigo do Avante! de Agosto de 1937 era já claro o processo levado a cabo para o transformar no faduncho choradinho de misticismos e ilusões, que durante a longa noite fascista imperou. «O fascismo, que vê como o Fado pode ser um instrumento de esclarecimento das massas trabalhadoras, feito pelos próprios trabalhadores, que vê como os camponeses e pescadores já o cantam mais do que as suas canções tradicionais, porque o Fado exprime melhor as suas aspirações. O fascismo combate-o e não o podendo matar – porque ele está na alma de todos os oprimidos – adultera-o», lê-se nessa longínqua edição.

Monotemático, sem crítica ou vontade. Era um monumento à força, modelado pela censura, cinzento, pequeno e sem expressividade. Quando lhe foi roubada a possibilidade de se transformar, de se adaptar a cada um dos seus ouvintes e praticantes, perdeu grande parte do seu valor. De revolucionário passou a passivo receptor.

Nesta 41.ª Festa do Avante! celebra-se o percurso emancipador que tem sido trilhado por vários artistas ao longo dos últimos anos. A mudança e a transformação é a palavra de ordem do renascer operado, sem medo de avançar, de absorver, de pôr em causa e de mudar. O Fado é, de novo, «uma manifestação popular», sem medo de caminhar, sem rodeios nem receios, rumo ao Futuro.

 



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