Comentário

Um sistema irreformável

Miguel Viegas

A ac­tu­a­li­dade da se­mana pas­sada obriga-nos a voltar a falar do BCE e do Eu­ro­sis­tema. Com efeito, após oito anos de crise, o BCE anun­ciou um plano de ex­pansão quan­ti­ta­tiva, se­guindo o exemplo da re­serva fe­deral e do banco de In­gla­terra. De acordo com o anúncio de Mário Draghi, o BCE pre­tende com­prar quan­ti­dades mas­sivas de dí­vida pú­blica de­tida pelos bancos à razão de 60 mil mi­lhões de euros men­sais até au­mentar o seu ba­lanço em 1100 mil mi­lhões de euros.

Esta ope­ração de­monstra acima de tudo o com­pleto fra­casso de todas as me­didas postas em prá­tica pelo BCE ao longo dos úl­timos anos e que re­pre­sentam já muitos mi­lhares de mi­lhões de euros in­jec­tados no sis­tema fi­nan­ceiro. Além disso, o facto de acon­tecer pas­sados vá­rios anos de ou­tras me­didas re­vela pro­fundas con­tra­di­ções no seio da UE acerca do man­dato do BCE. O custo da ce­dência alemã foi o de deixar quase todo o risco de cré­dito desta ope­ração para os bancos cen­trais na­ci­o­nais que arcam so­zi­nhos com 80 por cento dos riscos de in­cum­pri­mento, mais uma trans­fe­rência de riscos dos bancos pri­vados para a es­fera pú­blica. No caso por­tu­guês, esta si­tu­ação co­loca le­gí­timas dú­vidas sobre a ope­ração. Com efeito, sendo a compra re­a­li­zada na pro­porção do ca­pital que cada banco cen­tral na­ci­onal tem junto do BCE, isto im­plica em nú­meros re­dondos que a compra de dí­vida por­tu­guesa po­deria re­pre­sentar 24 mil mi­lhões de euros. Su­cede no en­tanto que o BCE já detém 19 mil mi­lhões de tí­tulos de dí­vida na­ci­onal. Uma vez que o BCE, de acordo com os seus es­ta­tutos não pode deter mais de 1/​3 dos tí­tulos de dí­vida emi­tidos por um Es­tado membro (Por­tugal tem neste mo­mento 93 mil mi­lhões de dí­vida ti­tu­la­ri­zada), po­demos desde já adi­antar que esta me­dida terá re­la­ti­va­mente pouco im­pacto no nosso País.

Esta me­dida re­vela igual­mente a com­pleta in­ca­pa­ci­dade do sis­tema em re­solver as suas pró­prias con­tra­di­ções. A UE vive hoje uma si­tu­ação pa­ra­doxal. Os países que podem em­prestar não o querem fazer e aqueles que pre­cisam de pedir em­pres­tado não o podem fazer. Existe ca­pa­ci­dade pro­du­tiva não uti­li­zada, de­sem­prego em massa e pes­soas ávidas de con­sumir mas sem ca­pa­ci­dade aqui­si­tiva. Presa neste cír­culo vi­cioso, a UE per­siste na sua ce­gueira de re­solver pro­blemas eco­nó­micos com me­didas mo­ne­tá­rias e re­cusa usar a po­lí­tica or­ça­mental como meio para in­tervir na cha­mada «eco­nomia real». Em vez disso, propõe este plano de ex­pansão quan­ti­ta­tiva vol­tando a en­cher os bolsos do sis­tema fi­nan­ceiro e lim­pando-o de riscos de in­cum­pri­mento, sem qual­quer ga­rantia sobre o des­tino destes fundos e sem per­ceber que a falta de in­ves­ti­mento, neste mo­mento, não de­corre da falta de li­quidez mas antes da falta de pers­pec­tivas de cres­ci­mento eco­nó­mico que de­correm da di­mi­nuição da ca­pa­ci­dade aqui­si­tiva das massas.

Na­tu­reza do sis­tema fi­nan­ceiro

Na­tu­ral­mente que para nós, as causas são mais pro­fundas. A ac­tual crise tem pro­fundas raízes na na­tu­reza do sis­tema fi­nan­ceiro eri­gido ao longo de dé­cadas e com par­ti­cular ên­fase a partir da dé­cada de oi­tenta que marca o início da he­ge­monia do pa­ra­digma ne­o­li­beral mo­ne­ta­rista da es­cola de Chi­cago. Este sis­tema as­senta na ca­pa­ci­dade ex­clu­siva de cri­ação mo­ne­tária ex nihilo (do nada) atri­buída aos bancos através do cré­dito. Os li­mites que exis­tiam a esta cri­ação mo­ne­tária foram sendo des­man­te­lados. Assim a taxa de re­servas obri­ga­tória (que os bancos devem ter junto do banco cen­tral para sa­tis­fazer os le­van­ta­mentos dos cli­entes) foi fi­xada a dois por cento dos de­pó­sitos em 1999 e pos­te­ri­or­mente bai­xada para um por cento (na China esta taxa é de 20 por cento). Uma vez que os bancos vivem da re­mu­ne­ração do cré­dito con­ce­dido, é óbvio que estes pro­curam ma­xi­mizar os em­prés­timos. Está na sua na­tu­reza. E não ha­vendo se­pa­ração entre a ac­ti­vi­dade de re­talho e a de in­ves­ti­mento, so­bressai outro factor de ins­ta­bi­li­dade que de­corre das ma­tu­ri­dades serem sempre mais curtas da parte dos afor­ra­dores em re­lação aos in­ves­ti­dores. Não é por acaso que ¾ dos países mem­bros do FMI (131 em 181) re­ve­laram pro­blemas graves do seu sis­tema fi­nan­ceiro entre 1980 e 1995.1 Man­tendo-se a ac­tual ten­dência de­pres­siva, é na­tural que esta in­jecção de li­quidez possa ali­mentar novas bo­lhas es­pe­cu­la­tivas em vez de re­a­nimar a eco­nomia real.

As ne­ces­si­dades de in­ves­ti­mento são gri­tantes para fazer face aos novos de­sa­fios do pre­sente e do fu­turo. Pre­ci­samos de re­pensar o nosso mo­delo pro­du­tivo, num quadro de es­cassez de ma­té­rias-primas e tendo como ho­ri­zonte a re­dução drás­tica dos com­bus­tí­veis fós­seis. Só uma eco­nomia pla­ni­fi­cada, no quadro de uma po­lí­tica e um go­verno pa­trió­tico e de es­querda po­derá estar à al­tura desta ta­refa. O sis­tema mo­ne­tário re­pre­senta um ins­tru­mento fun­da­mental que não pode ser dei­xado ao livre ar­bí­trio e à vo­ragem da ini­ci­a­tiva pri­vada que já mos­trou até à evi­dência do que é capaz. Como é con­ce­bível, por exemplo, que se im­peça o BCE de fi­nan­ciar di­rec­ta­mente o plano de in­ves­ti­mento de Juncker, para ime­di­a­ta­mente a se­guir ser o mesmo BCE a in­jectar 1100 mi­lhões de euros na banca e nos in­ves­ti­dores ins­ti­tu­ci­o­nais? O PCP tem como pre­missa fun­da­mental a dis­so­lução da União Eco­nó­mica e Mo­ne­tária, a re­con­quista da nossa so­be­rania mo­ne­tária e a re­cu­pe­ração, por via da in­ter­venção do Es­tado, do con­trolo pú­blico sobre o sector fi­nan­ceiro. A his­tória re­cente pa­rece con­firmar a jus­teza e pre­mência desta ori­en­tação.

1 Lind­gren, Carl-Johan, Garcia Gil­lian; Saal Matthew I. Bank Sound­ness and ma­cre­co­nomic po­licy. Washington, DC: IMF, 1996




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