Uma voz em Roma

Correia da Fonseca

O Natal é, como se sabe, um tempo cheio de luzes multicolores, de intensificações publicitárias, de expectativas comerciais quase sempre condenadas à decepção e de oralidades recheadas de sacratíssimos lugares-comuns. Por estes dias, os telespectadores portugueses puderam aceder a dois momentos exemplares deste tipo de discurso: um deles foi do senhor Presidente da República, desta vez acolitado pela senhora sua esposa, outro não se dirá de quem foi porque a prudência é sempre boa conselheira, mas é possível revelar que nessa alocução se falou de «a família» como tema destacado. Não será preciso sublinhar como a escolha desse tema foi importante neste momento da vida nacional em que cerca de um terço das famílias portuguesas já está afundada na pobreza que o Governo na devida altura assumidamente desejou para o País inteiro, salvo as excepções do costume; quando em milhares de casas o desemprego já atingiu marido e esposa, isto é, pai e mãe, presumivelmente para regozijo da senhora Merkel e de quantos ela representa e serve. Convém registar também uma outra voz, essa ouvida no próprio dia 25, que nos veio contar uma estória que, sendo de inteira ficção, de tão construída toda ela de inverdades óbvias era agressão, desrespeito ao Natal, verdadeiro pecado. Porém, não foram apenas vozes portuguesas as que directa ou indirectamente foram acolhidas pelos nossos televisores neste Natal que, como habitualmente e em desafio dos nossos votos, foi bem menos santo do que tanto foi desejado: chegaram vozes dos Estados Unidos, ecos muito resumidos de uma voz em Moscovo, vozes de Gaza e também de Telavive, até chegou uma voz de Cuba. Mas a voz que terá suscitado mais comentários, a que se mostrou mais atrevida, elevou-se aqui da Europa, de Roma.

O pior dos pecados

Foi, como já decerto se entendeu, a voz de Francisco Bergoglio, cardeal argentino, filho de um ferroviário de nacionalidade italiana, que, na sequência de uma espécie de leviandade que hoje decerto muitos lamentam, foi já vai para dois anos eleito por um punhadão de cardeais para chefiar a Igreja Católica. Talvez a generalidade desses eleitores até desconhecesse qual a profissão do pai de Francisco e essa ignorância tenha ajudado à escolha feita, pois consta um pouco que isso de ferroviários não é gente de muito fiar. O certo é que a eleição aconteceu e que, de então para cá, a inquietação e o claro desagrado têm vindo a atingir muita gente excelente, e sobretudo devota, que estava posta em sossego, dos seus anos colhendo o doce fruito, como Luís Vaz disse de Inês. Entende-se: aquilo no Vaticano estivera a andar muito bem, João Paulo II havia sido um talvez decisivo cruzado no combate aos infiéis do Leste; o seu valido Marcinkus, arcebispo de Chicago, tinha sido um eficaz presidente do Banco do Vaticano; em devido tempo o «céu» se encarregara de no breve período de um mês afastar do caminho João Paulo I, que na altura não viria muito a propósito. Ia, pois, tudo bem, quando de súbito, zás!, surge Francisco e desata a multiplicar inconveniências. Não apenas a falar de pobres e desamparados, o que já não é de muito bom gosto, mas também a responsabilizar as estruturas financeiras dominantes pelos desconcertos do mundo, a formular apelos em favor da dignificação e respeito pelo factor Trabalho, a condenar as várias opressões sociais. Logo se desencadearam vozes a acusá-lo de ser comunista, pecado enorme e irremível, pois é sabido que os comunistas é que se preocupam com tais coisas afinal naturais, sempre houve ricos e pobres. E agora, em plena quadra de Natal, chega a sua denúncia pública, clara e veemente, de torpezas e vícios cardinalíssimos, um pouco a lembrar Jesus no Templo. Bem vimos na TV como prováveis visados aplaudiram o Papa com as pontas dos dedos, e apenas por dever de ofício. Bem sabemos que a esperança é que ao perfazer 80 anos, em 2016, Francisco passe à reforma, e que o tempo passe depressa. E bem sabemos também que a prudência recomenda ao Papa alguns cuidados. Pois a História ensina que nem sempre a cidade do Vaticano é um lugar saudável. E o «céu» não dorme.

 



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