Joaquim Namorado – a poesia como modo de navegar
Há sempre «um novo sol no peito dos homens», escreveu Joaquim Namorado no livro «Aviso à Navegação», um dos seus mais importantes e glosados titulos. O quarto volume da colecção Novo Cancioneiro (Coimbra, 1941), era, em si mesmo, todo um programa de acção estética e política; de intenções geracionais, de resistência e dos contornos essenciais da poética neo-realista. Mas, igualmente, de intervenção cívica e cultural, integrante dos amplos sentidos que a função poética devia exercer enquanto veículo comunicacional privilegiado.
«Aviso à Navegação» foi, desse modo, o titulo síntese do período primeiro da criação das coordenadas poéticas do neo-realismo, expressando de forma modelar, por vezes sublime, as preocupações centrais do núcleo mais activo e consequente da geração coimbrã dos anos 1940: título que se polariza muito para além desse livro e da sua aura mitológica – é um alerta, um slogan, um percurso de luta, de vida, de esperança, esteio agregador dessa singular experiência colectiva.
O projecto que o Novo Cancioneiro configurava, tornar-se-ia emblemático para os jovens poetas que em Coimbra iniciavam, ou prolongavam, os seus estudos universitários, e ficaria como do mais impressivo das ressonâncias líricas e cívicas desse originalíssimo e influente, nas suas proposições e características, empreendimento literário.
Políbio Gomes dos Santos, Fernando Namora, Mário Dionisio, João José Cochofel, Augusto dos Santos Abranches, Manuel da Fonseca, Álvaro Feijó, António Ramos de Almeida, deram forma e voz aos 10 volumes publicados do Novo Cancioneiro, audaz e corajosa iniciativa cuja capacidade de invenção discursiva, provocatória e ideológica se tornaria marco referencial de conjuntiva e exemplar intervenção literária.
«Segue:/Tens nas bússolas todos os nortes/e nos sextantes/as alturas de todas as estrelas/que foram feitas só para te guiar», eis um modo de navegar, de percorrer caminhos rumo ao desconhecido, de enfrentar medos e assombros, de abrir estradas – itinerário de imprecações poéticas e revolucionárias; configuração de sentidos. Manifesto que o poema seguinte caracterizara com ainda mais fervor, energia e determinação: «Vai pelos caminhos seguros/nos vapores das companhias/ com a certeza de aportar…/deixa que eu continue sendo o último tripulante/ da fragata naufragada/deste mar dos tubarões». Desafio e determinação, eis as coordenadas que estabelecem esta poesia, esta carta de navegação, este modo de se fazer ao mar sem medo dos piratas.
Alentejano por nascimento, em Alter do Chão nado a 30 de Junho de 1914, conimbricence de adopção e afectos, Joaquim Namorado licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra, mas foi impedido pelo regime fascista de exercer o ensino. Só a partir de Abril de 1974 pôde ingressar no quadro de professores da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da «sua» Universidade. Em Coimbra viria a falecer, a 29 de Dezembro de 1986. Para além da sua vasta obra literaria colaborou como ensaísta e crítico nas revistas Seara Nova, Vértice e Sol Nascente.
«Olho o céu nas poças da rua/que a chuva de ontem deixou/Como pássaros verdes as primeiras folhas/empoleiram-se nos ramos enegrecidos do Inverno/e o sol entorna sobre o casario miserável/ uma chuva de falso oiro». O lado dorido, intimista do poeta face ao real, incapaz de desviar o olhar do mundo que o cerca, de inquirir, nas pequenas coisas do quotidiano o social, o falso brilho que ilude a realidade.
Os valores humanos são uma constante na poesia de Joaquim Namorado, poeta entre os maiores da nossa lírica, a par de um apurado sentido estético que mantém atento de ressonâncias simbólicas inusitadas sem, contudo, desligar esse labor do amplo e profundo questionamento social, de uma constante inquietação face à vida, de vibrante, afirmativo conteúdo antifascista.
Como afirmou Serafim Ferreira, penso que na poesia de Joaquim Namorado, sobretudo mais evidente em alguns poemas de «Aviso à Navegação», se escutam rumores esparsos de vozes poéticas que percorrem a planura desta fala: Neruda, Lorca (este, um dos poetas que mais seduziu os nossos poetas neo-realistas), Álvaro de Campos (que o poeta evoca na epígrafe), e António Nobre.
A poesia de Joaquim Namorado cresce nesse chão de todas as torrentes da fala, límpida e exigente – inconformada. Há nela uma ascese, uma fundura de análise a um tempo corajosa e elíptica que a torna singular, um modo de dizer a revolta e o nojo que ainda hoje, mais de 70 anos volvidos sobre a publicação de «Aviso à Navegação», nos envolve e estremece: «após uma onda outra onda:/uma onda que se quebra/outra que se levanta/e sempre novo movimento/eterno e gasto/das marés» – das marés, da esperança, farol impressivo do movimento, dos ciclos da história: sagaz, metafórico modo de dizer Futuro.
Aviso à Navegação, de Joaquim Namorado – edição facsimile da colecção com 10 originais do Novo Cancioneiro editados entre 1941-1944 – Edição Althum/2010