A camisa verde

Correia da Fonseca

A te­le­visão trouxe-me apenas o re­trato em imagem fixa, não even­tuais ima­gens fil­madas que po­derão ter es­tado ou não em ca­nais que não sin­to­nizei. Mas era bem ele, é claro, apenas mais velho (como aliás todos nós, que nin­guém tente ex­cluir-se), e dir-se-ia que re­di­vivo, pois é sa­bido que por vá­rias vezes a mes­mís­sima te­le­visão rezou em sua in­tenção an­te­ci­padas ora­ções de de­funtos. A crer no que a lo­cução off nos foi di­zendo, deu-lhe agora para ali, ao Co­man­dante Fidel, para sair dos lu­gares onde nos úl­timos tempos tem vindo a acampar, di­gamos assim, e re­a­lizar sur­tidas aqui e além, em eventos fes­tivos ou não mas sempre de sig­ni­fi­cado di­recta ou in­di­rec­ta­mente re­vo­lu­ci­o­nário. E o caso é que, pe­rante a sua pre­sença em tais lo­cais, aquilo a que talvez possa chamar-se «o jor­na­lismo in­ter­na­ci­onal», em­bora possa de­signar-se de outro modo, tem vindo a dar si­nais de de­sas­sos­sego e in­qui­e­tação, como quem per­gunta o que anda aquele homem por ali a fazer; ele, que pra­ti­ca­mente já havia sido dado como morto ou equi­pa­rado pelos bem in­for­mados cír­culos do cos­tume e as fontes sempre na­tu­ral­mente anó­nimas porque, como se sabe, os ser­viços se­cretos não usam as­sinar por baixo do que fazem, do que tentam fazer ou do que me­ra­mente de­sejam. E é pú­blico e no­tório, para usar aqui uma fór­mula tra­di­ci­onal, que entre as do­enças e ou­tros riscos de vida que o Co­man­dante tem en­fren­tado, os aten­tados com in­tenção de matar são es­ma­ga­do­ra­mente mai­o­ri­tá­rios. Tanto e de tal modo que de­poi­mentos de ex-agentes com con­fes­sada vo­cação ho­mi­cida têm re­ce­bido a atenção de edi­ções em li­vros que foram best sel­lers, com­pen­sando a frus­tração re­sul­tante dos as­sas­sí­nios fa­lhados com o êxito edi­to­rial ex­presso em bons dó­lares, pelo que não se perdeu tudo.

Um fré­mito de apre­ensão

O que me pa­receu muito cu­rioso foi que por mais de uma vez a co­mu­ni­cação so­cial a que acedi se tenha mos­trado es­pe­ci­al­mente sen­sível à ca­misa que Fidel en­ver­gara pelo menos numa das suas úl­timas saídas. Mais pre­ci­sa­mente, à cor da ca­misa: era verde. Pa­rece que aquelas ca­misas, verdes talvez da cor da ve­ge­tação de onde saiu um dia a re­vo­lução li­ber­ta­dora, im­plicam uma su­gestão de com­bate que apa­ren­te­mente im­pres­siona al­guns, por­ven­tura por terem cons­ci­ência de haver bons mo­tivos para que sejam com­ba­tidos. De qual­quer modo, a ver­dade é que Fidel não vinha ar­mado, não trazia um re­vólver à cin­tura, muito menos uma me­tra­lha­dora nas mãos oc­to­ge­ná­rias. Trazia apenas uma ca­misa. Verde. E o seu olhar: olhar de um homem que viu o seu país li­ber­tado quando todo o mundo ainda o via ir­re­me­di­a­vel­mente en­tregue à ex­plo­ração brutal sobre ele exer­cida pelo grande im­pério da re­gião, isto é, o olhar de um homem que vê mais longe. E pa­receu-me, com razão ou sem ela, que a com­bi­nação da­quela ca­misa, verde, e da­quele olhar, re­so­luto e lú­cido, sus­citou um fré­mito de apre­ensão pelos quatro cantos do mundo. Re­gis­taram-no os media, como aliás lhes cumpre, tendo-o feito talvez en­quanto sen­tiam um travo amargo de de­sa­pon­ta­mento: agora que por ali as coisas iam tão bem, com aquela enorme chusma de presos po­lí­ticos a serem li­ber­tados, pa­rece que cerca de cem, quer dizer, quase todos, gente até por vezes acu­sada de ser paga por po­tên­cias ex­ternas (quando não se­nhores, era falso, apenas era paga por ar­tigos que es­crevia para jor­nais es­tran­geiros, bom ma­te­rial ne­ces­sa­ri­a­mente muito bem pago, ora essa!); pois agora, quando as coisas iam tão bem, apa­rece aquele homem em pú­blico. Vivo, ma­ni­fes­ta­mente vivo, con­tra­ri­ando todos quantos du­rante anos e anos lhe vêm de­se­jando a morte. E com uma ca­misa verde. Verde de com­bate, Verde de re­sis­tência. Verde de dizer ao mundo que Cuba está ali, e pros­segue, e con­tinua a ser cre­dora de uma so­li­da­ri­e­dade que he­róica e lon­ga­mente me­receu. Verde de dizer «Si!».



Mais artigos de: Argumentos

Os «Legionários de Cristo» e a velha conspiração

Nesta coluna, no anterior número do Avante!, começámos a referir uma organização católica menos conhecida cuja acção decorre, normalmente, nos terrenos religiosos e laicos do ensino, da acção social e do combate à pobreza. No universo...

Pequim, outra vez

Para a Fan Shan, a Maria João e o Toi, que me cuidaram e apaparicaram –  Pequim   Ali estava eu, sentado junto a uma ampla janela dum restaurante da zona das embaixadas. Não me sentia como o José Régio quando escrevia «…em Portalegre dizia/ cidade onde...

Dentistas

Os dentistas portugueses começaram a recusar clientes que se lhes apresentem com «cheques do Estado». Razão curta e grossa: o Estado já deve quatro milhões de euros desses pagamentos (40 euros por consulta), segundo a estimativa da Ordem dos dentistas. O Governo não nega,...

Chegou o <i>Carrega no botão!</i>

Carrega no botão! É o novo concurso da RTP-1, que estreará no próximo sábado, pelas 21 horas. É apresentado por uma dupla de respeito – José Carlos Malato e Fernando Mendes -, que assim de novo se juntam para animar os serões de sábado do canal...