«Conversas no Café Guichard», de José Viale Moutinho

Domingos Lobo

«Conversas no Café Guichard», de José Viale Moutinho, é o livro que Camilo merecia nos seus 200 anos


José Viale Moutinho, imparável criador das letras lusas, da poesia ao conto, do romance ao ensaio e, se a tanto o seu pródigo talento de escriba lhe deixa espaço de sobejo, ei-lo ainda atento e informado (apaixonado, diria) pesquisador da vida e obra desse génio das letras que foi Camilo Castelo Branco, do qual se cumprem no ano corrente 200 anos do nascimento.

Viale Moutinho, junto com Alexandre Cabral, acalentaram o sonho de escrever uma biografia de Camilo, mas o tempo não deixou, no caso de Alexandre Cabral, que esse sonho se cumprisse, ficando-se, entre outras obras camilianas, por esse magnífico e exemplar Dicionário de Camilo Castelo Branco, e Moutinho deu-nos diversos e importantes textos, culminando com esse incontornável Camiliana – Todos os Contos, Novelas curtas e Romances breves, que há anos o Círculo de Leitores publicou.

Surge agora, pela singular pena de José Viale Moutinho, a marcar o segundo centenário do autor que fez de Seide, em Vila Nova de Famalicão, o seu espaço fecundo de criatividade literária, uma biografia atrapalhada, a várias vozes, umas rendidas à prosa do autor de Eusébio Macário, outras nem tanto. Viale Moutinho, com atento empenho, reuniu e anotou esses textos num volume a que deu título de Conversas no Café Guichard: Não sei se alguma vez entraram num dos mais emblemáticos cafés portuenses, no Café Guichard, que ficava num dos pontos mais centrais da cidade. Estou a falar da Praça Nova, mais modernamente Praça da Liberdade. Ali, onde os mastins do regime salazarista carregavam com os seus bastões nos costados de quantos insubmissos encontravam à mão de espancar, de morder, de levar para o sinistro casarão da Rua do Heroísmo, a umas passadas do Prado do Repouso1… (pp.10/11) Não é que Viale Moutinho conseguiu dar-nos de Camilo o retrato justo, e de forma tão cáustica, solene e desabrida, a partir dos autores selecionados, que este livro se transforma na mais certeira e lídima homenagem que, em tempos de embustes vários e conspícuos temores, tão inesperada de acontecer deste modo, longe das louvaminheiras e solenes entretelas da prosa circunstancial e imbecil dos poderes, que a tão sarcástico e genial cultor da nossa língua, daria certamente deleitado gozo.

Entre janotas, jornalistas e escribas de plurais tendências e arrebicado estro, à hora do café e do conhaquezinho, do charuto de qualidade controlada pelo volume da bolsa, notável é surgirem textos tão modelares e escorreitos sobre a mundividência e a dispersão criativa do autor de A Queda de Um Anjo, do seu inconstante feitio, do seu agressivo verbo, que tantos inimigos lhe granjeou na Invicta, ou da exaltação rendida à sua prosa única, à sagacidade, à forma como o seu romantismo ultrapassou limites, moralidades de rodapé e se ergueu como expoente máximo da capacidade discursiva e descritiva com que disparou contra o Portugal miúdo, ignorante, tradicional e bacoco, como ele desnudou a retórica pífia dos Morgados de Fafe e dos Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda.

Nestes textos, que traçam o retrato possível de Camilo Castelo Branco, temos autores tão estimados – alguns, até, inesperados –, como Alberto Pimentel, Oliveira Martins, Ana Augusta Plácido, Bulhão Pato, Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Gonçalves Crespo, Manuel Laranjeira, Sampaio Bruno, Silva Pinto, António Sérgio, Júlio Diniz, Trindade Coelho, entre muitos outros. Silva Pinto, traça de Camilo o acinte de homem curtido pelas agruras da vida: o Mestre riu-se com as minhas histórias, e anotou profeticamente: V. tem dinheiro e tem espírito. Não pode isso durar. Hão-de lhe roubar uma das coisas. Aposto que o dinheiro. Ao contrário, António Sérgio irá criticar-lhe a personagem de Simão Botelho, considerando que este não poderia ser o rendido e desesperado apaixonado, dado o seu carácter ser de um jovem degenerado, um impulsivo sanguinário.

Conversas no Café Guichard, de José Viale Moutinho, é o livro que Camilo merecia nestes 200 anos que marcam o dia em que, a 16 de Março de 1825, em Lisboa, na Freguesia dos Mártires, nasceu Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, o primeiro, e um dos raros escritores portugueses, a conseguir viver da escrita (escreviver, diria Urbano Tavares Rodrigues), em país que continua a ser, para seu mal, de escassas leituras. Só Viale Moutinho e a sua gaveta de memórias, nos poderia dar um livro assim.

1 Um dos cemitérios da cidade do Porto

 



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