Uma Barragem Contra o Pacífico, de Marguerite Duras – pela Companhia de Teatro de Almada
Uma Barragem Contra o Pacífico é um dos romances mais fortes e socialmente comprometidos de Marguerite Duras
Rui Mateus
Nascida em 1914, na então colónia francesa da Indochina (Vietname), Marguerite Duras irá reflectir em grande parte das suas obras literárias (O Amante; Hiroxima, Meu Amor; Uma Barragem Contra o Pacífico; Moderato Cantabile) sobre o colonialismo francês, a exploração, a violência, o racismo e a alienação dos colonizadores e colonizados, a condição feminina, num processo diegético que entronca na autoficção, em que a criação literária da autora invade em profusão conjuntural as suas narrativas de vivências, de memórias, de acontecimentos da história da 1.ª metade do século XX e desse singular período da sua vida em Saigão. Esse enfoque nos anos em que viveu na Indochina passará também para o cinema, através do realizador Alain Resnais, em Hiroxima, Meu Amor, em O Amante, de Jean-Jacques Annaud, e no filme India Song, que ela própria realizou.
A escritora inscreveu quase sempre na sua obra as preocupações sociais, as grandezas e misérias de uma sociedade desigual, em que a condição humana, a injustiça e a ganância têm enfoque nos seus textos publicados até meados dos anos 1950. Uma Barragem Contra o Pacífico é um desses títulos, que Geneviéve Serreau adaptou a teatro e Álvaro Correia encenou para a CTA, que conta com uma belíssima e funcional implantação cénica da autoria de Sérgio Loureiro, ao qual cabe também o desenho dos figurinos.
A peça Uma Barragem Contra o Pacífico fala-nos de uma família de colonos a quem cabe a exploração agrícola de um pedaço de terra que confina com o Pacífico. Mãe e dois filhos, um rapaz e uma rapariga, ajudados por um capataz, tentam em vão construir uma barragem, feita de troncos de árvores e de outros materiais facilmente perecíveis, para que as monções do Pacífico não destruam os campos de cultivo e a água salgada não invada os pântanos. Tarefa vã. A água e sua fúria irão destruir a frágil barragem, deixando, ano após ano, labuta após labuta, a família mais pobre e endividada, impotente para impedir a força dos elementos. Não basta que a mãe continue a enviar cartas iradas para o governo colonial, denunciando o embuste e a miséria dos que vivem nos arrozais, o desespero de uma mãe esbarra sempre nos silêncios do poder: «Os senhores venderam-me um deserto de água e sal em troca de quinze anos da minha vida. Vocês talvez não saibam, mas aqui morrem tantas crianças que os camponeses as enterram na lama dos arrozais, o que significa que as terras que vocês cobiçam e lhes roubam, as únicas boas da planície, fervilham de cadáveres de crianças.» As terras pantanosas do Sul da Indochina, onde a vida se torna impossível.
Uma Barragem Contra o Pacífico é um dos romances mais fortes e socialmente comprometidos de Marguerite Duras, tornando-a, em 1950, uma autora reconhecida, dado que nos anos do pós-segunda Guerra Mundial o mundo ainda conseguia reflectir sobre os destroços, inquietar-se, ainda contava os milhões de mortos e sentia-se colectivamente culpado pelo Holocausto; os poderes ainda respondiam a apelos éticos e morais, andávamos todos em busca de tempos mais felizes e justos, julgando ser impossível repetir-se no mundo tragédia igual, ainda era possível dizer «nunca mais», sem que as trombetas dos verdugos e da usura, dos vendilhões de morte embalada em drones e ogivas nucleares, nos tentassem calar o grito, impedindo o libelo acusatório contra os «senhores da guerra». Daí o êxito deste livro de Duras, este relato impressivo e violento face a um sistema desumano e letal, «esta é a história», escreve a autora da versão teatral, «de uma longa injustiça, contra a qual combatem três personagens principais: a Mãe e os seus dois filhos, Joseph e Suzanne. Essa injustiça, levada a cabo pela administração colonial francesa, foi utilizada por todos os sistemas coloniais europeus.» Estou a lembrar-me do massacre perpetrado pelo sinistro governador-civil de S. Tomé, Carlos Gorgulho, no ano de 1953, sobre a população nativa, querendo obrigá-la a trabalho escravo nas roças de cacau e obras públicas, no que ficou conhecido por «massacre de Batepá», ou Mata Pá!
A personagem Suzanne, magnificamente interpretada por Íris Cañmero, transporta o eu de Duras, as suas memórias, a sua biografia, entre a recusa e a fuga ao real de uma família a querer soltar-se da miséria, de uma casa inacabada, tendo a música como elemento de conforto que apaziguava a raiva dos dias agrestes; Joseph o filho inconformado, buscará outros horizontes (um João Jesus irrepreensível) e a Mãe, obcecada por uma terra infértil, impotente perante um Estado que tudo prometeu aos colonos e os abandonou à sua sorte, interpretada por uma Teresa Gafeira, em pleno, a dominar a acção. Encenação segura, poética e sensível de Álvaro Correia, para mais um grande «Tempo de Teatro» da CTA.