- Nº 2677 (2025/03/20)

Uma Barragem Contra o Pacífico, de Marguerite Duras – pela Companhia de Teatro de Almada

Argumentos

Rui Mateus

Nascida em 1914, na então colónia francesa da Indochina (Vietname), Marguerite Duras irá reflectir em grande parte das suas obras literárias (O Amante; Hiroxima, Meu Amor; Uma Barragem Contra o Pacífico; Moderato Cantabile) sobre o colonialismo francês, a exploração, a violência, o racismo e a alienação dos colonizadores e colonizados, a condição feminina, num processo diegético que entronca na autoficção, em que a criação literária da autora invade em profusão conjuntural as suas narrativas de vivências, de memórias, de acontecimentos da história da 1.ª metade do século XX e desse singular período da sua vida em Saigão. Esse enfoque nos anos em que viveu na Indochina passará também para o cinema, através do realizador Alain Resnais, em Hiroxima, Meu Amor, em O Amante, de Jean-Jacques Annaud, e no filme India Song, que ela própria realizou.

A escritora inscreveu quase sempre na sua obra as preocupações sociais, as grandezas e misérias de uma sociedade desigual, em que a condição humana, a injustiça e a ganância têm enfoque nos seus textos publicados até meados dos anos 1950. Uma Barragem Contra o Pacífico é um desses títulos, que Geneviéve Serreau adaptou a teatro e Álvaro Correia encenou para a CTA, que conta com uma belíssima e funcional implantação cénica da autoria de Sérgio Loureiro, ao qual cabe também o desenho dos figurinos.

A peça Uma Barragem Contra o Pacífico fala-nos de uma família de colonos a quem cabe a exploração agrícola de um pedaço de terra que confina com o Pacífico. Mãe e dois filhos, um rapaz e uma rapariga, ajudados por um capataz, tentam em vão construir uma barragem, feita de troncos de árvores e de outros materiais facilmente perecíveis, para que as monções do Pacífico não destruam os campos de cultivo e a água salgada não invada os pântanos. Tarefa vã. A água e sua fúria irão destruir a frágil barragem, deixando, ano após ano, labuta após labuta, a família mais pobre e endividada, impotente para impedir a força dos elementos. Não basta que a mãe continue a enviar cartas iradas para o governo colonial, denunciando o embuste e a miséria dos que vivem nos arrozais, o desespero de uma mãe esbarra sempre nos silêncios do poder: «Os senhores venderam-me um deserto de água e sal em troca de quinze anos da minha vida. Vocês talvez não saibam, mas aqui morrem tantas crianças que os camponeses as enterram na lama dos arrozais, o que significa que as terras que vocês cobiçam e lhes roubam, as únicas boas da planície, fervilham de cadáveres de crianças.» As terras pantanosas do Sul da Indochina, onde a vida se torna impossível.

Uma Barragem Contra o Pacífico é um dos romances mais fortes e socialmente comprometidos de Marguerite Duras, tornando-a, em 1950, uma autora reconhecida, dado que nos anos do pós-segunda Guerra Mundial o mundo ainda conseguia reflectir sobre os destroços, inquietar-se, ainda contava os milhões de mortos e sentia-se colectivamente culpado pelo Holocausto; os poderes ainda respondiam a apelos éticos e morais, andávamos todos em busca de tempos mais felizes e justos, julgando ser impossível repetir-se no mundo tragédia igual, ainda era possível dizer «nunca mais», sem que as trombetas dos verdugos e da usura, dos vendilhões de morte embalada em drones e ogivas nucleares, nos tentassem calar o grito, impedindo o libelo acusatório contra os «senhores da guerra». Daí o êxito deste livro de Duras, este relato impressivo e violento face a um sistema desumano e letal, «esta é a história», escreve a autora da versão teatral, «de uma longa injustiça, contra a qual combatem três personagens principais: a Mãe e os seus dois filhos, Joseph e Suzanne. Essa injustiça, levada a cabo pela administração colonial francesa, foi utilizada por todos os sistemas coloniais europeus.» Estou a lembrar-me do massacre perpetrado pelo sinistro governador-civil de S. Tomé, Carlos Gorgulho, no ano de 1953, sobre a população nativa, querendo obrigá-la a trabalho escravo nas roças de cacau e obras públicas, no que ficou conhecido por «massacre de Batepá», ou Mata Pá!

A personagem Suzanne, magnificamente interpretada por Íris Cañmero, transporta o eu de Duras, as suas memórias, a sua biografia, entre a recusa e a fuga ao real de uma família a querer soltar-se da miséria, de uma casa inacabada, tendo a música como elemento de conforto que apaziguava a raiva dos dias agrestes; Joseph o filho inconformado, buscará outros horizontes (um João Jesus irrepreensível) e a Mãe, obcecada por uma terra infértil, impotente perante um Estado que tudo prometeu aos colonos e os abandonou à sua sorte, interpretada por uma Teresa Gafeira, em pleno, a dominar a acção. Encenação segura, poética e sensível de Álvaro Correia, para mais um grande «Tempo de Teatro» da CTA.

 

Domingos Lobo