Maria Teresa Horta, a arte de viver e a coragem cívica

Domingos Lobo

Maria Teresa Horta é um dos nomes maiores das letras portuguesas da segunda metade do século XX


Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa a 20 de Maio de 1937 e faleceu a 4 de Fevereiro deste ano, na sua cidade natal, aos 87 anos de idade. É um dos vultos cimeiros da nossa Literatura, marcando o seu território de combate, denúncia e insubmissão, de modo impressivo, com a publicação, em Abril de 1971, desse incontornável livro que é Minha Senhora de Mim, livro que a PIDE apreendeu, logo em Junho, e que levou o então secretário da propaganda de Marcelo Caetano, César Moreira Baptista, a advertir a editora da Dom Quixote, Snu Abecassis de, caso publicasse mais livros de Teresa Horta, lhe encerraria a editora.

Figura quase mítica, mulher poeta de rara argúcia e assertivo verbo, quase etérea, das maiores das letras portuguesas da segunda metade do século XX e deste que se atropela em economês de usura, perdido no atoleiro da pós-modernidade e no lamaçal dos discursos de ódio.

A geração de Abril, da qual ela foi esteiro e voz fecunda, conhece-a de livros como Tatuagem, Cidadelas Submersas e desse modelar Minha Senhora de Mim, no qual, corajosa, ela afirma introspectiva, Comigo me desavim/ minha senhora de mim/ sem ser dor ou ser cansaço/ nem o corpo que disfarço/ nunca dizendo comigo/ o amigo nos meus braços. A afirmação do corpo como matéria de posse e de afirmação, de desejo e rebeldia, da integridade solar da Mulher como ser inteiro e livre entre iguais.

Sabemo-la, depois, a crescer, nos versos e na prosa, voz singular, corajosa em país atado à modorra conformada dos dias, ao conservadorismo dos hábitos e dos gestos (até nas letras, espaço que Rimbaud nos ensinou ser de liberdade livre), e Maria Teresa Horta a remar contra a corrente, a dizer-nos desse ideal libertário, a iluminar os contornos de uma teoria pagã da sexualidade, ao arrepio de qualquer obediência de escola, feminismo incluído, assumindo, de forma irreverente, uma nova visão dos direitos das mulheres, alicerçada na sua libertação de todas as formas de opressão.

Quando em Maio de 1971, ano pródigo em confrontos com os poderes, com esse ranço hipócrita e serôdio que a quase todos emboscava de azedume e lástima, «as mãos de 3 aranhas astuciosas» (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa) iniciaram a escrita de Novas Cartas Portuguesas, tendo por matriz o texto Cartas Portuguesas, atribuído a Mariana Alcoforado, freira em Beja, a partir da excelente tradução de Eugénio de Andrade, estariam por certo longe de imaginar o torvelinho que a sua publicação, em 1972, pela Estúdios Cor, iria provocar no país sisudo, amargo e triste de Salazar e Caetano.

A propalada Primavera Marcelista ficava, através da persecutória investida sobre um livro, como já acontecera com o processo imposto à Antologia da Poesia Erótica e Satírica, posta a nu. A farsa pífia da pretensa «abertura» do substituto de Salazar, não resistiu a um livro que falava da mulher, do seu corpo e da liberdade de o usar; do desejo, do prazer e do amor compartilhado. O livro, como era usual nestes tempos de bruma, foi retirado das livrarias três dias após o seu lançamento. O pretexto, segundo a omnipresente PIDE, disfarçada de DGS, seria a de o conteúdo ser «insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública». Seguiram-se os processos-crime, as audiências e toda a parafernália de acções de cerco e ameaças que o poder fascista usava em casos que tais.

Mais do que tematizar a líbido, as complexas relações entre homem e mulher nas sociedades contemporâneas, as Novas Cartas Portuguesas denunciavam também a situação política do País, a guerra colonial, o poder judicial e suas manhas, a condição da mulher numa sociedade conservadora e fortemente padronizada pelo homem, numa sociedade patriarcal, fechada e conservadora, a emigração (mais de 2 milhões de portugueses haviam, à época, saído do País), a falta de perspectivas para o futuro dos jovens.

Maria Teresa Horta dirigiu até aos anos 1980, a importante revista Mulheres.

Foi em Luanda, então a trabalhar no jornal ABC – Diário de Angola, que soube, através de um despacho censurado da France-Press, do «escândalo» que constituiu, na vigência caetanista do aparelho fascista, As Novas Cartas Portuguesas, esse ainda hoje esteiro libertário da Mulher, desse território do corpo feminino ungido zona livre, liberto graças a esse livro escrito a três corajosas mãos, dos anátemas inquisidores, das fogueiras regeneradoras em pátria fendida por ancestrais medos, que lhes tolheram o desejo e secaram a fonte da paixão durante séculos.

Em 1984, Maria Teresa Horta publicou esse belíssimo, perturbador romance que é EMA. Uma vez mais, a autora percorre, nesse livro, o universo trágico das mulheres, os seus silêncios, os temores, o nojo, a revolta, o ódio e a insubmissão; a mulher envolvida nesse confronto desigual com a carga hereditária, cultural, idiossincrática, que alguns homens transportam, quase inconscientemente, para as relações com as companheiras.

A voz serena, límpida, mesmo quando o estupor das noites insanas a invade, a narrativa poética de Teresa Horta a estabelecer de forma exemplar, nos tempos, na distensão sintática, na componente lírica da fala, esse território de monólogos que são gritos lancinantes, de emoções desesperadas, das loucas, das bruxas; mulheres frágeis, desesperadas, em busca de um corpo que só se dá quando sobre ele recai, de forma violenta, o desejo de posse e de ultraje; da sexualidade maculada.

Mulheres, as mulheres de Maria Teresa Horta, no vórtice de um vulcão que as suas narrativas nos devolvem em forma de arrepio, de medos, de purga: passagem de um tempo velho em busca de um tempo compartilhado e justo. Como, de resto, foi sempre o território literário da autora de Ambas as Mãos sobre o Corpo. Uma mulher que sempre se sentiu ferida/ ferida com tua arma/ na raiva de te querer tanto. Entre o amor, o direito ao corpo e ao prazer e a luta pela Liberdade da Mulher, pela sua emancipação, pela igualdade de direitos, deveres e cidadania. De ser gente de corpo inteiro.

Que a continuemos a ler, a resgatar o seu verbo belo e incisivo, que nos desperta para o novo, o raro, o determinante grito libertário que nos torna mais sábios e mais humanos.



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