Memória das Palavras, de Anabela Fino
As crónicas estão organizadas em cinco capítulos: Sociedade, Media, Hipocrisia, Demagogia, Barbárie
Textos políticos publicado no mais singular dos jornais políticos – o Avante!, escreveu Filipe Diniz no prefácio que acompanha Memória das Palavras, de Anabela Fino, livro que reúne parte das crónicas que a jornalista foi publicando ao longo de várias décadas neste jornal. Crónicas exemplares, pela capacidade e lucidez expositiva dos conteúdos, pelo domínio exemplar da língua no seu português culto e absorvente, pela qual passavam, passam, a crítica asseverativa contra as malfeitorias dos diversos governos que nos desgovernaram (as excepções são irrelevantes neste domínio), desviando-se, e opondo-se, aos sonhos iniciais que as portas de Abril abriam para a claridade dos dias amplos e solares da nossa festa colectiva.
semanalme o Avante!, e lá estava a crónica modelar, mesmo que breve, a palavra exacta, a registar, para memória futura, os desmandos do nosso tempo, denunciando, ora de forma irónica, ora com a argúcia que a língua permite, o acervo danoso, ignaro com que a direita vem manchando de cinza a paisagem social e humana destes nossos sobressaltados dias. Ainda, a espaços, encontramos, para nosso contentamento, a voz de Anabela Fino plasmada nas páginas do nosso jornal, a abrir-nos horizontes, a desmascarar embustes, a desmontar o subtexto cínico dos discursos dos poderes instalados, a dizer-nos que o rei vai nu.
O livro Memória das Palavras, de Anabela Fino, reúne, nas suas quatrocentas páginas, número substantivo das crónicas que a jornalista e chefe de redacção do Avante!, durante vários e fecundos anos, foi publicando na coluna A Talhe de Foice, crónicas agrupadas em cinco capítulos que reflectem os temas recorrentes na sua escrita, sobre os quais incidem as suas inquirições, memórias, críticas, análise ideológica e política da realidade portuguesa contemporânea: Sociedade, Media, Hipocrisia, Demagogia, Barbárie, e deste modo facilitando a leitura e desenvolvimento reflexivo, em conjunto, dos temas que determinam a conceptualidade central das suas análises.
Memória das Palavras é um livro assumidamente político no discurso dialéctico que a estrutura, no sentido em que Walter Benjamim a entendia: «ser dialéctico é ter nas velas o vento da história. A vela são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. Decisiva é a arte de as saber içar», de ir ao leme das palavras justas e urgentes, dar a ver o outro lado do espelho. Anabela Fino tem essa capacidade rara de saber içar as velas, revelar os alçapões da História e levar-nos na viagem até portos ainda por achar, indicar-nos que há outros caminhos, outras rotas que nos podem conduzir à aventura primordial da razão e da justiça, por caminhos que as suas crónicas desocultam, penetrando a opacidade dos malefícios, da hipocrisia, da manha, da pesporrência que inundam os discursos do poder, essa espécie de praga que vai corroendo, como ratos, as frágeis ameias das nossas vidas: Uma ameaça, que como todas as ameaças atinge primeiro os mais pobres, os mais desprotegidos, os que mais se deixam iludir com a aparência das coisas e não vêem para além do que querem ver. Esta crónica sobre «roedores» (?) desagua, como tantas outras da autora, num desarmante final carregado de sábia ironia: Falamos, naturalmente dos ratos. Dos legítimos. […] Dos roedores que conspurcam a nossa comida e roem as crianças dos bairros de lata, fazem ninho nos shoppings e engordam nas pastelarias lisboetas. […] Não se pensou, naturalmente, que estivesse a falar de política?!
Numa crónica de 1989, em que Anabela Fino se refere aos media, nomeadamente à forma entusiástica como a RTP, 15 anos após Abril, tratou a passagem dos 100 anos do nascimento do ditador Salazar, designando-o alguém que ficará na História como um dos estadistas do século XX, contrapondo que no país de Abril, Nunca Mais seja possível impor, como desígnio, a trilogia salazarenta de Deus, Pátria, Autoridade, que se não discutam os princípios programáticos que nos impôs, como verdade irredutível, o fascismo mais longo da Europa, sob o qual milhões de portugueses viveram, afirmando que Na memória colectiva ficou gravada a sangue a memória sinistra da António Maria Cardoso, ponto de passagem obrigatório de quem caía nas garras da PIDE/DGS, terminando a crónica com perentória firmeza: Um alerta, afinal, de que o Fascismo, Nunca Mais não pode ser apenas uma palavra de ordem.
O livro termina com a crónica Essa Palavra… Liberdade, de 2004, tão actual e verdadeira que dói de tão arredia estar dos circunspectos e medíocres discursos dos senhores que hoje ocupam as efémeras cadeiras do poder: Pela Liberdade se morre porque só em Liberdade se vive no pleno sentido da palavra. E nós estamos vivos. Vivos como a memória que habita estas palavras.