Recuperar o sentir humano, estético, político
A importância desta exposição é sublinhar a importância artística, humanista e política da produção do movimento neo-realista
No Museu do Neo-Realismo uma exposição de longa duração, com a curadoria de David Santos e Paula Loura Batista, ocupa vasta área expositiva na base do seu acervo e coleçções depositadas, com um extenso e interessante título: «A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto». São várias as áreas disciplinares das artes visuais, a que foi associada um conjunto de fotografias da Colecção «A Família Humana».
A importância desta exposição é sublinhar a importância artística, humanista e política da produção do movimento neo-realista enfrentando a realidade social imposta pelo regime fascista-salazarista do Estado Novo, mas também a dos artistas fechados nas suas torres de marfim que derivam para a arte pela arte que Walter Benjamin denuncia num excelente texto que é uma tomada de posição política, uma declaração sobre o estatuto das artes: «Fiat ars – pereat mundus [que a arte seja criada ainda que o mundo pereça], diz o fascismo que, como confessou Marinetti, espera da guerra a satisfação artística da percepção transformada pela técnica. Trata-se visivelmente da consumação da arte pela arte. A humanidade, que antigamente, com Homero, foi objecto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-se objecto de contemplação para si própria. A alienação de si própria atingiu o grau que lhe permite viver a sua própria aniquilação como um prazer estético de primeira ordem. É assim a estetização da política praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com politização da arte.»1
Em Portugal são os artistas comunistas e os seus companheiros de estrada que, com o movimento neo-realista, de algum modo colocam em prática o preconizado por Walter Benjamin, sem que subordinem princípios estéticos a mera propaganda política, bem patente na diversidade desta exposição em que estão, entre outros, representados artistas tão plurais como José Dias Coelho, Júlio Pomar, Nuno San-Payo, Maria Barreira, Vasco Pereira da Conceição, Margarida Tengarrinha, Maria Keil, Querubim Lapa, Rogério Ribeiro, Lima de Freitas, Cipriano Dourado, Manuel Ribeiro de Pavia, Alice Jorge, Jorge Vieira, João Hogan, Jorge de Oliveira, Joaquim Namorado, Rui Filipe, Victor Palla, Frederico Pinheiro Chagas. Diversidade afirmada num conhecido texto de Álvaro Cunhal: «a arte deve exprimir a realidade viva e humana de uma época, exprimir uma tendência histórica progressista», acrescentando que se arte fosse só moderna na forma seria incompleta, «formas novas podem conter um significado velho e retrógrado enquanto formas velhas – ainda que excepcionalmente – podem conter um significado moderno e progressista».
Nas condições existentes de severa repressão e censura nas entrelinhas estava claro que a tendência histórica progressista era o marxismo-leninismo e que se fazia uma crítica aberta ao formalismo. Em 1945, Mário Dionísio escreveria também n’ O Diabo que «os valores estéticos são valores. São elementos sem os quais não existe arte. Simplesmente, pensa-se agora que os valores estéticos não existem em si próprios, que há qualquer coisa de mais vivo e mais profundo para que o artista deve viver». Agrestes polémicas, sobre forma e conteúdo, serão desencadeadas por esses textos programáticos.
Hoje parecem-nos quase arqueológicas mas, como dizem os curadores desta exposição, «a arte é como uma gota de água que cai no deserto, pois nunca opera revoluções, nem uma acção imediata ou directa sobre a realidade, interpelando-nos, porém, o suficiente para nos fazer reflectir, a partir de uma magia que nos espanta e influencia ao longo da vida». É essa evidência que nos deve sobressaltar quando a criação artística no seu conjunto, desde meados do século XX e XXI, está, no dizer irascível de Thomas Bernhard, condenada a produzir coisas nauseabundas: «isso você sabe tão bem como eu, no que se refere à chamada arte contemporânea ela não vale um caracol, como se costuma dizer»2.
O que é uma realidade desde que Duchamp, que tinha outros alvos e objectivos, abriu a caixa de pandora das caixas registadoras dos supermercados das artes e que esta exposição, mesmo que não seja esse o seu objectivo, coloca em questão.