O teatro na obra de Luiz Francisco Rebello, a propósito do seu centenário

Domingos Lobo

Luiz Fran­cisco Re­bello é um nome in­con­tor­nável da nossa cul­tura con­tem­po­rânea

Dra­ma­turgo, en­saísta, his­to­ri­ador, ad­vo­gado, Luiz Fran­cisco Re­bello (LFR) é um nome in­con­tor­nável da nossa cul­tura con­tem­po­rânea. Nas­cido em Lisboa a 10 de Se­tembro de 1924, fa­leceu nesta ci­dade a 8 de De­zembro de 2011, aos 87 anos.

Desde os anos 1940 que LFR foi um ac­tivo cri­ador de pro­jectos cul­tu­rais, com in­tensa in­ter­venção na área do te­atro, tanto como dra­ma­turgo, como na di­vul­gação da his­tória do te­atro por­tu­guês e uni­versal, crí­tico e tra­dutor de au­tores como Sartre, Pi­ran­dello e Ber­tolt Brecht, re­ve­lando grande parte da obra dra­ma­túr­gica do autor alemão, pro­jecto a que se de­dicou em con­junto com Ilse Losa e Fiama Hasse Pais Brandão.

Em 1946, cria com Edu­ardo Scar­latti, Jorge de Faria, Ma­nuela de Aze­vedo e João Pedro de An­drade, entre ou­tros, jo­vens ac­tores e dra­ma­turgos aco­li­tados a um res­pei­tado pro­fessor de es­té­tica te­a­tral, Gino Sa­vi­otti, o Te­atro-Es­túdio do Sa­litre, ini­ci­a­tiva que iria re­novar de forma mar­cante o an­qui­lo­sado meio te­a­tral de Lisboa, in­cen­ti­vando a cri­ação de novos textos, re­ve­lando novos au­tores e ou­tros mé­todos de abor­dagem con­cep­tual dos mesmos, desde a en­ce­nação à im­plan­tação cé­nica, re­pre­sen­tação e cri­ação de pú­blicos, na senda do que Sta­nis­lavsky ini­ciou no seu Te­atro de Arte de Mos­covo; pro­jecto de rup­tura, na pro­po­sição de um te­atro em con­so­nância com as di­nâ­micas pos­sí­veis de um novo tempo his­tó­rico do pós-guerra. Essa es­pe­rança es­bo­roou-se, como sa­bemos.

No es­paço do Te­atro-Es­túdio do Sa­litre foi pos­sível ver re­pre­sen­tadas peças de Re­bello (O Mundo co­meçou às 5 e 47), Vasco Men­donça Alves, Bran­quinho da Fon­seca, Pedro Bom, Alves Redol e Ro­drigo de Melo, al­guns dos quais es­tre­antes na função. Mas foi fogo fátuo. Pri­meiro, a cen­sura, com a sua ha­bi­tual pressão cas­tra­dora a tudo o que res­su­masse laivos pro­gres­sistas e in­te­li­gência, de­pois, o cerco eco­nó­mico, im­pe­dindo es­ta­be­lecer um pro­jecto con­ti­nuado, pro­fícuo e du­ra­douro. Deste modo, ficou por terra um co­me­ti­mento ver­da­dei­ra­mente novo, au­tó­nomo, in­ven­tivo e con­se­quente ten­dente à re­no­vação, nas ver­tentes es­té­tica e fun­ci­onal, do nosso te­atro.

Em 1971, LFR foi no­meado di­rector do Te­atro de S. Luiz, cargo a que re­signou no ano se­guinte, face à proi­bição pela cen­sura da peça A Mãe, de Sta­nislas Wit­ki­ewicz.1

Pre­sidiu à So­ci­e­dade Por­tu­guesa de Au­tores de 1973 a 2003, sendo no do­mínio do Di­reito de Autor e Di­reitos Co­nexos, con­si­de­rado, a nível in­ter­na­ci­onal, um es­pe­ci­a­lista de mé­rito. Já de­pois do 25 de Abril, e face a vá­rios ata­ques, inércia e me­no­ri­zação da Cul­tura, pelos go­vernos do PS e PSD, LFR fundou, em 1992, com José Sa­ra­mago, Ma­nuel da Fon­seca, Ar­mindo Ma­ga­lhães e Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, a Frente Na­ci­onal Para a De­fesa da Cul­tura.

O seu te­atro é mar­cado por uma pro­funda pre­o­cu­pação ética, so­cial e es­té­tica, pela aná­lise da de­ge­ne­res­cência da bur­guesia ur­bana e de­núncia do fas­cismo. Da vasta pro­dução de LFR neste do­mínio, sa­li­ento as peças: O Dia Se­guinte (1953), peça que o pro­jectou in­ter­na­ci­o­nal­mente; Al­guém Terá de Morrer (1956), É Ur­gente o Amor (1958), Pás­saros de Asas Cor­tadas (1959), que o re­a­li­zador Artur Ramos levou ao ci­nema; e, já de­pois do 25 de Abril, Li­ber­dade, Li­ber­dade (1974), com co­au­toria de Hélder Costa e Luís de Lima; Por­tugal, Anos 40 (1983), uma eficaz de­núncia do sa­la­za­rismo, e A De­so­be­di­ência (1998), sobre Aris­tides de Sousa Mendes vs. Sa­lazar. Da sua vasta obra his­to­ri­o­grá­fica e en­saís­tica, sa­li­ento a His­tória do Te­atro Por­tu­guês, Te­atro Mo­derno. Ca­mi­nhos e Fi­guras, In­tro­dução ao Di­reito de Autor e His­tória do Te­atro de Re­vista. Como di­vul­gador e crí­tico de te­atro, co­la­borou na Vér­tice, JL, Seara Nova e Co­ló­quio-Le­tras. Re­firo ainda, pela im­por­tância que teve no nosso pa­no­rama edi­to­rial, a co­lecção Re­per­tório para um Te­atro Ac­tual, que du­rante anos di­rigiu para a PRELO.

No de­correr da re­cente Feira do Livro de Évora, LFR foi o autor ho­me­na­geado, a pro­pó­sito da pas­sagem do seu cen­te­nário, sendo a sua obra ob­jecto de di­versos co­ló­quios.

Sa­li­ento ainda, dada a im­por­tância li­te­rária e obra no­tável no campo do me­mo­ri­a­lismo, a sua au­to­bi­o­grafia O Pas­sado na Minha Frente, dado tratar-se de um livro em que o autor per­corre a re­a­li­dade por­tu­guesa, a nossa his­tória comum desde os anos 1940 a 2004, com rara sen­si­bi­li­dade crí­tica e ex­po­si­tiva. As me­mó­rias de LFR são as de um ci­dadão do mundo, que viu, que leu esse mundo e que o tentou trans­formar de modo in­ter­ven­tivo, que uti­lizou esse co­nhe­ci­mento nos seus textos, no seu te­atro, como um lú­cido D. Qui­xote que uti­li­zasse as luzes do palco para expor os seus e os nossos dramas. Para nos levar a agir.

 

1 Ver o n.º 9 da co­lecção Reper­tório para um te­atro ac­tual, Prelo/​1972, em que LFR expõe o «pro­cesso de um es­pec­tá­culo anu­lado», bem como a tra­dução da peça A Mãe, de Sta­nislas Wit­ki­ewicz

 



Mais artigos de: Argumentos