Lembrar Alice Jorge

Manuel Augusto Araújo

Os anos redondos são utilizados para se fazer comemorações. Em anos em que várias celebrações coincidem as menos sonoras por vezes quase passam despercebidas. É o caso de 2024 em que os 500 anos de Camões, os 50 da Revolução de Abril, os 100 anos de Carlos Paredes secundarizam o centenário de Alice Jorge, noutro contexto, em terras gaulesas o centenário do 1.º Manifesto Surrealista de André Breton é atropelado pela vida moderna vitaminada pelos Jogos Olímpicos.

O centenário de Alice Jorge deve recordar uma das primeiras pintoras portuguesas que deram visibilidade às mulheres na frente das artes visuais. Antes dela outras, em Portugal e no estrangeiro, tinham tido algum destaque mas sem a visibilidade que estavam e haveriam de conquistar. Até essas primeiras gerações as mulheres, como Maria Keil com fina e cortante ironia assinalava, «estão muito representadas na pintura...nuas».

Alice Jorge frequentou a Escola de Artes Aplicadas António Arroio, transitando para Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e depois para a sua congénere no Porto, onde finalizou os estudos de pintura e desenho arquitectónico.

No início do seu percurso artístico aderiu ao neo-realismo, tendo participado nas Exposições Gerais de Artes e no ano de 1953, integrou com Júlio Pomar, António Alfredo, Lima de Freitas, Rogério Ribeiro e Cipriano Dourado o grupo de artistas que, impulsionados por Alves Redol, foi aos arrozais do Ribatejo registar o trabalho que, em duras condições, aí era executado, trabalhos que ficariam conhecidos na História da Arte como o Ciclo do Arroz.

O que distingue e sobressai na poética de Alice Jorge é a tónica que coloca na representação das mulheres, resgatando-as do segundo plano a que a sociedade na altura as remetia. É uma atitude de artista e mulher que, sem grandes alardes, abre uma frente feminista. É uma mulher que mostra outras mulheres nos seus quotidianos de forma directa, com grande mas poderosa simplificação formal, explorando as suas identidades, com grande acento lírico em contextos depurados.

Alice Jorge evolui formalmente para o abstraccionismo, com formas signos que não renegam o seu trabalho anterior. A artista começou a expor os seus trabalhos em mostras colectivas no início dos anos 50 mas o que a torna determinante nas artes portuguesas é o seu empenho e trabalho na Gravura, Cooperativa de Gravadores Portugueses, de que foi, em 1956, uma das suas fundadoras, tendo um papel central na democratização da arte pela gravura, no movimento de renovação da gravura em Portugal, na determinação, com que até finais dos anos 60, enfrentou as crises que atravessaram a cooperativa, lutando diariamente pela sua sobrevivência. Notável gravadora, a par de toda a sua outra actividade artística, dirigiu cursos de gravura e, nos anos 80, publicou, com Maria Gabriel, um livro fundamental: Técnicas da Gravura Artística. Igualmente relevante são os seus trabalhos de ilustradora de livros, nomeadamente Aquilino Ribeiro, David Mourão-Ferreira ou Matilde Rosa Araújo, sendo de referir as edições portuguesas do Decameron, da Divina Comédia, das Novelas Exemplares de Cervantes, das Mil e Uma Noites.

Alice Jorge, embora de perfil discreto, era uma mulher de altos méritos artísticos e pedagógicos que, sempre com coerência e dignidade, se envolveu nas grandes causas humanas e políticas, defendendo os valores da liberdade e da democracia, pelo foi impedida pela ditadura fascista- salazarista de ensinar em escolas públicas, embora tivesse o curso de Pedagogia na Faculdade de Letras de Lisboa.

É esta artista e mulher de que se deve celebrar o centenário com uma bem merecida exposição retrospectiva da sua extensa obra de pintura, gravura, desenho, cerâmica.



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