Mao, vocalista dos Garotos Podres

«Em nenhum outro lugar nos poderíamos sentir mais em casa»

Com mais de 40 anos de estrada, os Garotos Podres são uma das mais influentes bandas da cena punk brasileira. Mao, o vocalista, fala ao Avante! do percurso entre o primeiro concerto, de apoio ao fundo de greve dos operários metalúrgicos do ABC de São Paulo e o que apresentarão na Festa do Avante!, que é para si «o mais importante festival do mundo».


Os Garotos Podres nasceram no seio da luta contra a Ditadura Militar

O vosso grupo foi fundado em 1982 e tem uma história de empenhamento político e social. Quais foram, nestes mais de 40 anos, os momentos mais marcantes desse percurso, os que guardam com maior significado na vossa memória?

Nossa banda surgiu em 1982, nos últimos anos da Ditadura Militar no Brasil (1964/85). Era um período de ascensão dos movimentos populares – particularmente do movimento sindical do ABC paulista – e do próprio movimento punk no ABC e em São Paulo.

Em 42 anos de trajectória dos Garotos Podres, os momentos marcantes foram numerosos, mas destacaria dois deles, pelo seu simbolismo. O primeiro foi, certamente, a nossa primeira «aparição pública», durante um Festival Beneficente ao Fundo de Greve do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ocorrido em 1983. O segundo episódio que destacaria seria o concerto que fizemos em 2019 no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no Dia Internacional do Rock e em apoio ao Presidente Lula, que na época estava encarcerado nas masmorras de Curitiba.

Para nós, estes dois eventos ocorridos nesta entidade sindical representam não apenas uma espécie de «retorno às origens», mas principalmente sela o nosso compromisso ao lado da luta dos movimentos populares pela emancipação de todos os trabalhadores.

Na mensagem que enviaram sobre a vossa ida à Festa!, e que o Avante! publicou, valorizam o facto de este espectáculo ir ocorrer num momento «dramático que a humanidade enfrenta», referindo a ascensão da extrema-direita no mundo. Como é que comparam esta situação com a que viviam no tempo em que iniciaram a carreira? E como observam a actual situação política no Brasil?

Actualmente a humanidade enfrenta novamente terríveis ameaças. O avanço da extrema-direita na Europa e na América Latina ameaça a humanidade com as temíveis sombras do fascismo.

No Brasil sofremos um golpe de Estado em 2016 (que depôs a Presidente Dilma), seguido de mais um golpe que manteve encarcerado o Presidente Lula para que o proto-fascista Jair Bolsonaro fosse eleito. Em 2022, conseguimos derrotar o fascismo nas urnas, mas por uma ínfima margem de votos. Hoje, o fascismo continua a ameaçar o povo brasileiro, e conta com a maioria dos deputados e senadores no Congresso. Além disso, o fascismo conta com o desavergonhado apoio da imprensa burguesa, transformada em propagandista da extrema-direita.

Nós, dos Garotos Podres, nascemos no seio da luta e da resistência contra a Ditadura Militar. Hoje estamos engajados novamente na luta contra o fascismo. Entendemos que repousa sobre os ombros da classe trabalhadora a responsabilidade de defender a humanidade contra a barbárie fascista. Esperamos que a nossa participação da Festa do Avante! simbolize, não apenas esta necessária e inquebrantável aliança entre os trabalhadores portugueses e brasileiros, mas a unidade dos trabalhadores de todo o mundo!

Em 2018, os Garotos Podres gravaram uma versão de Grândola, Vila Morena, a canção de José Afonso que acabou, em 1974, por ficar como símbolo da Revolução dos Cravos. O que é que em 2018 viram em Grândola que justificasse elaborar essa versão e o que queriam, com essa gravação, dizer ao vosso público brasileiro?

Grandola, Vila Morena, ao ser utilizada como a senha para a Revolução que derrubou a mais longeva ditadura fascista da Europa, passou a representar os mais universais anseios por paz, democracia, emancipação dos trabalhadores e de luta contra a tirania. Neste sentido, essa música de Zeca Afonso é mais do que uma canção portuguesa: é uma canção que representa anseios que são universais.

No Brasil existem duas versões primorosas desta canção. A primeira delas é a da cantora brasileira Nara Leão, gravada em 1974, época em que vivíamos o período mais repressivo da Ditadura Militar brasileira, e saudávamos esperançosamente os ventos democráticos que sopravam do outro lado do oceano. Em 1986, veio à luz a primorosa versão de Grândola, Vila Morena, gravada pelo 365, icónica banda punk brasileira.

Em 2018, estávamos novamente sob um regime de excepção, gerado pelo golpe de Estado de 2016. O principal candidato da esquerda brasileira estava encarcerado e havia o risco de um candidato com clara inspiração fascista ser eleito. Naquela época decidimos gravar a nossa versão de Grândola, Vila Morena, à guisa de um chamado à resistência do povo brasileiro às ameaças que se avizinhavam.

Ainda em 2014, gravámos também a canção Avante, Camarada, de Luis Cília. Desde então esta canção não pode faltar em nossos concertos. Ficamos muito felizes com o interesse do público brasileiro em relação a estas músicas, pois elas representam a luta dos povos contra a opressão e a injustiça.

O punk/rock brasileiro, em cuja história no Brasil vocês ocupam um lugar central, ainda é relevante no vosso país ou apenas resistem bandas com tradições, como a vossa ou a que também veio, o ano passado, à Festa do Avante!, os Ratos de Porão?

No Brasil o Punk Rock representa um vigoroso movimento que resiste no cenário underground. São centenas de bandas que actuam, apesar do boicote da grande mídia (cada vez mais reaccionária). Bandas mais antigas, cuja trajectória remonta à década de 1980, se destacam num cenário de resistência musical. Ficamos muito felizes quando os Ratos de Porão foram convidados para a Festa do Avante!, no ano passado. Indubitavelmente um merecido reconhecimento da importância desta grande banda brasileira no cenário musical.

Porque é que na Festa do Avante!, como disseram no texto que já referi, se sentem entre camaradas?

A Festa do Avante! é – sem sombra de dúvidas – o mais importante festival que ocorre hoje no mundo. Através dessa Festa ocorre a congregação da maior parte da esquerda europeia e de outros continentes. É uma Festa que consagra em sua práxis um dos mais preciosos enunciados da história do movimento operário, expresso no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels: Proletarier aller Länder, vereinigt euch! (Proletários de todo o mundo, uni-vos!). Nesse sentido, em nenhum outro lugar do mundo poderíamos nos sentir «mais em casa» do que na Festa do Avante!.

Avante Camarada, Avante,
Junta a tua
à nossa voz!
Avante Camarada, Avante Camarada,
Que o sol brilhará para todos nós!





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