A minha juventude e outros textos dispersos, de Sérgio de Sousa
Quando já quase tudo se contou, quando sobre o nosso mundo se disse da essência, quando escrevemos sobre os amigos e os camaradas de uma longa caminhada, da família, da guerra onde a contragosto estivemos, das mulheres, dos livros amados, as estórias inventadas no pó dos dias, quando nos livros expressámos a raiva, o desencanto, a revolta e a serenidade, o tempo que habitamos, restamos nós ao espelho, a transportar para o papel o jovem escritor em formação, o jovem cão de que falava Joyce. Resta-nos o jogo da memória, esse solitário xadrez do qual saímos sempre perdedores. Memória e afectos, o lugar dos nossos passos levantados, na dispersão da inquieta alma sedenta de saberes, de conhecer o que está para além da janela do quarto, dos livros lidos sofregamente, da escola, dos primeiros amigos, os primeiros filmes, o primeiro e duro contacto com a realidade.
É um privilégio para Sérgio de Sousa, autor de muitos mundos reais e inventados, chegar às sete décadas e uns trocos de vida, e ter a memória ágil, desperta para não falhar nessa estocada, para não fazer batota. O autor a sós com essa carga de longínquas memórias, nessa difícil arte de estar vivo e poder contar o que se viu e viveu quando infante criatura, raro sortilégio será, que os desuses do efémero nos concedem para que, dos dias de levante, da inicial experiência de respirar e haver sol e nuvens e gente e mistérios que se revelam num abrir dos olhos, os dias do espanto – que tudo isso, anos volvidos e a velhice a bater-nos à porta, agreste e muda, fiquem inscritos, no audaz limbo das palavras, traços dos nossos iniciais passos sobre a terra. Poucos o arriscam fazer com plena sinceridade, sem escamotear as verdades mais duras, as que sempre tememos revelar.
A autoficção é um jogo limpo, em que nus nos expomos? Não é, não tem de ser. A quem interessará o lixo, o sarro, as lágrimas vertidas na almofada? Aos voyeuristas astutos, aos cuscas inveterados? Esses que busquem outros livros, outros autores, o que mais sobeja nas vitrines, até à náusea, é literatura light, que nos contam vidinhas murchas. Sérgio de Sousa, autor que muito prezamos, não traça caminhos sobre a estrumeira: já basta o que basta e nos polui os dias. É ele mesmo quem nos afirma: «Aqui, resolvi consignar o que considerei mais relevante que fique a saber-se de quanto vivi na juventude.» Nem mais.
De origem burguesa, o jovem Sérgio, nascido sob a batuta vigilante e severa de um já velho Estado Novo, andará em quase permanente saco de viagens entre a casa do pai e a da avó materna (os pais estavam separados), conhecerá várias casas, bairros diversos de uma Lisboa, à época (1950/60) ainda poiso acessível à bolsa dos alfacinhas: do Chiado, às Necessidades, Campo de Ourique, muitas casas de permeio, com os avós, as tias, os primos e o pai, o cúmplice, sempre presente. Não se pense que estas andanças de casa em casa se assemelha aos percursos da família Saramago por quartos ou, nos melhores dias, por parte de casas de uma Lisboa desigual, sequer das Viagens de Um Pai e de Um Filho Pelas Ruas da Amargura, de Baptista Bastos. As contínuas mudanças de Sérgio resultam da condição profissional do pai, economista, e da mudança de estatuto.
O progenitor que o levará a Paris, ao teatro e às Folies Bergères, e ele num espanto inquieto de luzes e mulheres semi-nuas. Os cinemas de bairro, os liceus Camões e Pedro Nunes, onde se iniciou nas lutas estudantis dos estudantes do secundário, com relevante acção militante; os livros primeiros: Julio Dinis, Herculano, Garrett, António Nobre Melville, Anatone France. Tudo isto antes que uma prima que vivia ao Arco do Cego, lhe oferecer uma bicicleta, a qual, por determinação paterna foi devolvida à procedência acompanhada de cruel missiva: «Não sou um menino rico, não tenho condições para brincar com uma bicicleta.»
Mas o despertar do desejo compensa todos estes pequenos desgostos de percurso: «A minha qualidade de vida melhorou. Até uma rapariga que ia dançar aos Alunos de Apolo me pedia para se sentar na minha mesa na esplanada do Jardim da Estrela.»
A minha juventude e outros textos dispersos, de Sérgio de Sousa, não se detém nas suas interessantíssimas memórias de adolescência. Outra faceta do autor assaz menos conhecida, a de crítico literário, percorre o volume, em textos incontornáveis.
Sérgio é um autor sensível, senhor de uma prosa arguta e culta, a escrever atento ao seu/nosso tempo e sempre do lado justo da vida, aquele em que bate o coração.