Recurso pelo Estado à arbitragem had-hoc é fonte de opacidade e corrupção
O PCP voltou a chamar a atenção para a necessidade de impedir que o Estado recorra à arbitragem had-hoc para a resolução de litígios envolvendo dinheiros públicos, alertando que tal prática favorece sempre os privados em detrimento do interesse público.
O recurso à arbitragem está previsto em tudo o que é PPP
Em causa está o instrumento que permite ao Estado submeter litígios contratuais em que possa ver-se envolvido, não aos tribunais administrativos existentes para esse efeito, mas a «um mecanismo espúrio de privatização da aplicação da justiça feito para beneficiar os interesses privados».
Nestes exactos termos o definiu o deputado comunista António Filipe, que na semana transacta levou o assunto a plenário em declaração política da sua bancada, onde realçou que nessa instância «intervêm árbitros que não se sabe quem são nem que interesses defendem, onde não se conhecem os fundamentos das decisões, mas em que se sabe à partida que o Estado fica sempre a perder, numa espécie de jogo em que o campo está sempre inclinado a favor dos interesses privados».
Um exemplo concreto desta obscura realidade foi a execução contra o Estado intentada pelo consórcio privado «Elos – Ligações de Alta Velocidade», S.A.» no montante de 202 milhões de euros, decorrente de uma condenação em tribunal arbitral (ver caixa).
Processo ardiloso
No entender de António Filipe este é um «exemplo por demais escandaloso», sendo que não é um caso isolado, uma vez que o «recurso à arbitragem had-hoc está previsto em tudo o que é parceria público-privada, seja na saúde, seja nas PPP rodoviárias, envolvendo milhares de milhões de euros de recursos públicos».
E por ser uma «forma privada e opaca» de dirimir litígios, que envolvem em regra milhares de milhões de euros de recursos públicos, é que o PCP em várias ocasiões apresentou iniciativas legislativas no sentido de lhe pôr cobro, proibindo o Estado de recorrer à arbitragem. Todas, no entanto, esbarraram no voto contra de PS, PSD, CDS, IL e Chega. Ou seja, como assinalou o parlamentar comunista, sempre que o PCP apresentou iniciativas em defesa do interesse público e do dinheiro dos contribuintes o seu desfecho foi o chumbo por parte daqueles partidos e ainda ouviu a acusação de «ter preconceitos contra a iniciativa privada».
«No dia seguinte, voltam todos a ser contra a corrupção, a dizer que o problema é a falta de regulação do lobbying, a bater com a mão no peito ou a exigir limpezas não se sabe bem de quê, porque quando se aponta a sujidade fazem de conta que não a vêem, porque quando se tenta tocar em interesses dos grandes negócios privados, aí é tudo limpinho», rematou António Filipe.
No domínio do absurdo
António Filipe relatou de forma pormenorizada o caso relacionado com o consórcio privado «Elos – Ligações de Alta Velocidade», exemplificativo de como resulta em prejuízo para o interesse público o recurso pelo Estado à arbitragem had-hoc para resolver litígios contratuais.
Na origem do diferendo está a recusa do Tribunal de Contas, em acórdão publicado em 2012, do visto prévio relativo ao contrato de concessão celebrado entre o Estado e aquele consórcio para o projecto e construção do troço Poceirão/Caia.
Recusado o visto pelo Tribunal de Contas, por desconformidade dos actos e contratos com as leis vigentes, como está bem de ver, o Estado ficou legalmente impedido de executar o contrato, deixando este de produzir efeitos.
«Quando um contrato está sujeito a visto prévio do Tribunal de Contas, todos os contraentes o sabem, e se não sabem deveriam saber, que sendo recusado o visto, não há direito à execução do contrato, que fica legalmente proibido, nem há lugar ao pagamento de qualquer indemnização», esclareceu a propósito o deputado comunista.
Não obstante, a «Elos» apresentou em 2013 pedido de constituição de Tribunal Arbitral, para obter a compensação que entendia ser-lhe devida, vindo aquele a condenar o Estado a pagar uma indemnização de cerca de 150 milhões de euros.
Aqui chegados, o absurdo salta à vista, constatou António Filipe: «O Estado, o que equivale a dizer, os contribuintes, foram condenados a indemnizar um consórcio privado porque o Estado não cumpriu um contrato que não poderia cumprir porque o Tribunal de Contas o declarou ilegal».
Mais, se o Estado «pagar a condenação do tribunal arbitral incumpre a decisão do Tribunal de Contas e os sues responsáveis incorrem em responsabilidade financeira».
Importa ainda dizer que, não obstante a pendência nos tribunais administrativos de uma acção de anulação da sentença arbitral movida pelo Estado, esta não tem efeito suspensivo da decisão arbitral, razão aliás para que o consórcio tenha promovido a execução do Estado no montante de 202 milhões de euros.
«O Estado fica assim na posição a que se refere uma conhecida canção brasileira: se fugir o bicho pega, se ficar o bicho come», ironizou António Filipe, pondo em evidência a urgência de proibir o Estado de recorrer à arbitragem had-hoc, como o PCP reiteradamente tem proposto.