O primeiro mural do Portugal de Abril

Manuel Augusto Araújo

Uma das 48 secções do mural ficou em branco: «aqui devia estar José Dias Coelho»

O dia 10 de Junho era dia particularmente assinalado pelo fascismo salazarista que o tornou conhecido como Dia de Camões, de Portugal e da Raça, uma claríssima exaltação colonialista fundada num racismo estrutural. Depois da Revolução do 25 de Abril, do vento de liberdade que varreu o País, de um extraordinário 1.º de Maio, o 10 de Junho tinha de ser expurgado desse seu aparato nacionalista fascista em linha com os princípios do Movimento das Forças Armadas, que propugnavam a descolonização, a independência das colónias contra o que tinha sido assumido por Spínola na primeira comunicação da Junta de Salvação Nacional, em que afirmou a «sobrevivência da nossa Nação como pátria soberana no seu todo pluricontinental». Uma declaração contra-revolucionária indiciadora do seu percurso futuro com vários violentos golpes contra o Portugal livre e democrático. A não esquecer que Spínola foi reabilitado, condecorado, promovido a marechal, entre outras benesses, por Mário Soares, que sabia muitíssimo bem porque o fazia e em que embrulhos se tinha mexerufado com tão sinistra personagem.

A Revolução dos Cravos tinha de recuperar o 10 de Junho limpando toda a sua carga ideológica.

Organizou-se uma grande festa para celebrar o renascimento desse novo 10 de Junho em Belém, no Mercado da Primavera, pintando-se um gigantesco mural de 25 por três metros, dividido em 48 secções, simbolizando os 48 anos de ditadura fascista salazarista. Os artistas foram escolhidos por um efémero, mas na altura pujante, Movimento Democrático dos Artistas Plásticos. A cada um foi sorteada uma secção, ficando uma vazia a assinalar «aqui devia estar José Dias Coelho», o jovem artista assassinado pela PIDE em Dezembro de 1961. Foi uma vibrante jornada festiva e artística que a televisão transmitiu em directo e Manuel Costa e Silva registou num filme que se pode ver no Youtube (https://youtu.be/XPAK818tPZw?feature=shared). Os artistas plásticos estavam por inteiro com Abril, com a liberdade, a democracia, com o povo. Este é o primeiro mural dos muitos que iriam assinalar a Revolução e os sucessos que transformavam o País. Murais que foram desaparecendo, agora recuperados num excelente ensaio de Cristina Pratas Cruzeiro¹.

Não foi completamente pacífica essa festa. A emissão televisiva foi interrompida por ordem do I Governo Provisório, ordenada por Raul Rego, o ministro socialista que tutelava a comunicação social, quando o Teatro da Comuna satirizava os dirigentes do regime anterior, em particular a Igreja Católica, na sua esmagadora maioria conivente com o antigo regime. Foi o primeiro acto de censura depois do 25 de Abril, o que provocou uma viva e generalizada revolta de todos os que, no Mercado da Primavera e em suas casas, seguiam o desenrolar da festa. Júlio Pomar pegou nos seus pincéis, amarrou-os à sua pintura, pintou por cima: «a censura existe.»

O mural, uma grande jornada de solidariedade com o Movimento das Forças Armadas, intitulava-se Liberdade, Arte, Revolução e tinha como subtítulo «flor liberdade fogo imaginação força unidade arte revolução». Foi uma acção irrepetível por isso indigitado para representar Portugal na Bienal de Veneza, onde não estávamos desde 1960. Também não chegou a ir para o Salão político artístico de Paris, o Salon de la Jeune Peinture. Por desleixo da Direcção Geral das Artes, um incêndio na galeria de Arte Moderna, por motivos nunca completamente esclarecidos, destruiu-o. Fica aqui, 50 anos depois, a memória dessa primeira grande pintura colectiva no pós-Revolução de Abril.

 

¹Cristina Pratas Cruzeiro, Atitude 74, Pichagem e Pintura Mural na Revolução de Abril, Página a Página, 2024.

 



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