A direita quer condenar e intimidar o Tribunal de Contas... porque fez as contas!
Houve promiscuidade total entre o interesse privado e o interesse público na gestão do processo de privatização da ANA
Parece que a propósito da privatização da ANA muita água vai ainda correr. Depois de se terem unido para travar a Comissão Parlamentar de Inquérito à privatização da ANA proposta pelo PCP, quer PS quer PSD tentam agora – com o concurso e o apoio da multinacional Vinci – desviar as atenções do essencial exposto pela Auditoria do Tribunal de Contas: os prejuízos para o País provocados pela privatização da ANA.
Seguindo um guião cuidadosamente elaborado, a multinacional – e quem a apoia – começou a falar sobre dois relatórios do Tribunal de Contas de sentido diferente, um primeiro que elogiaria a privatização e um segundo que a criticaria. Abrindo caminho para que o PSD afirmasse que este segundo fora publicado em época eleitoral e para o prejudicar (ou seja, que um conjunto de Juízes do TdC, literalmente adivinhando que o primeiro-ministro se iria demitir e que haveria eleições em Março de 2024, começou um ano antes a elaborar um Relatório de centenas de páginas, incluindo reunindo o contraditório de múltiplas entidades – nomeadamente a ANA – com o impuro e simples objectivo de prejudicar eleitoralmente o PSD numas eleições que ainda não estavam marcadas).
Estamos perante uma fraude, só possível porque credibilizada por uma comunicação social que está, ela própria, ajoelhada perante os interesses económicos.
Para o perceber basta um dado simples: o relatório de que falam o PSD e a multinacional não é público, nunca foi publicado, e como tal não pode ser discutido. É um relatório que a própria Parpública diz ter recebido para exercer o direito ao contraditório, mas do qual nunca recebeu uma versão final(i). Quem o cita nem pode ser contrariado. O outro relatório, pelo contrário, foi publicado no início deste ano, é público, pode ser lido, citado, criticado, e esse relatório é completamente arrasador sobre a privatização.
Depois, o PSD e a Vinci destacam o facto de ter havido quatro juízes que votaram contra o relatório que critica a privatização. E a comunicação social, obediente, valoriza as opiniões desses quatro juízes, e desvaloriza as opiniões dos cinco que votaram a favor.
Por fim, o PSD finge ignorar que a Assembleia da República, quando decidiu pedir a realização de uma auditoria à Privatização da ANA em 2018, já conhecia a existência desse primeiro relatório apócrifo que o PSD e a Vinci (e alguma CS) tanto têm valorizado.
O primeiro relatório, nunca publicado, limita-se a apreciar a correcção formal do processo. O segundo relatório vai mais longe, aponta as incorreções formais, mas faz as contas do processo de privatização. E é por fazer as contas que o Tribunal de Contas está a ser criticado e está a ser acusado de «fazer política». Porque ao «fazer as contas» o Tribunal de Contas demonstra duas coisas fundamentais:
• Que a empresa foi vendida por um valor muito inferior ao anunciado aos portugueses, e que por isso a redução da dívida pública, fruto dessa privatização, foi um quinto do anunciado na altura;
• que o Estado português, ao longo dos 50 anos de concessão, entrega mais de 20 mil milhões de euros de receita à multinacional Vinci, por pouco mais dos mil milhões efectivamente pagos.
É este o crime principal da Auditoria do Tribunal de Contas, aos olhos daqueles que se têm governado a fazer privatizações.
Mas quer a Vinci, quer o PS e o PSD não querem que se investiguem as outras questões formais apuradas na auditoria do Tribunal de Contas. E por isso tentam afastar a discussão do conteúdo do relatório. Ora o Tribunal de Contas apurou, entre muitas outras questões, e sem margens para dúvidas, que:
• Houve promiscuidade total entre o interesse privado e o interesse público na gestão do processo, com administradores públicos com contratos prometidos publicamente no privado a decidirem sobre a privatização, e com gestores vindos da gestão privada a decidir sobre as questões de regulação da actividade da ANA depois de privatizada.
• O mecanismo formal usado de fazer a concessão à ANA pública e depois vender a empresa com a concessão feita, serviu para reduzir o controlo sobre o processo de concessão, que é decisivo para se poder avaliar o valor da ANA, e, porque conduzido em paralelo ao processo de venda, serviu para objectivamente valorizar a ANA depois de fixado o preço de venda.
• O prazo de apenas cinco anos para preservar a documentação – expressamente colocado pelo Governo PSD/CDS no Decreto-Lei de privatização - torna mais difícil a realização da Auditoria. A que acresce «a falta de fidedignidade da documentação» e «o risco material de deturpação de documentação processual» denunciados pelo TdC.
É a discussão do conteúdo do Relatório, é o apuramento total das responsabilidades – políticas e económicas – dos actos ali criticados, que PS, PSD e a multinacional querem evitar a todo o custo. Mesmo que para isso tenham de avançar – como estão a fazer – num ataque ao próprio Tribunal de Contas.
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(i) A única referência, em todos os Relatórios e Contas da Parpública, a este relatório é em 2016: «Em 2016, prosseguiram as ações de auditoria conduzidas pelo Tribunal de Contas aos processos de privatização conduzidos desde 2011. Durante o ano em análise, a Parpública exerceu o seu direito ao contraditório no âmbito das auditorias aos processos de privatização da ANA Aeroportos de Portugal, S.A. e da EGF Empresa Geral do Fomento, S.A., não tendo sido, entretanto, recebido qualquer relatório e/ou recomendações passíveis de ser divulgadas.»