O futuro Já Era, Sybille Berg, na CTA
Ainda nos será possível pôr a alegria em cena? A resposta depende de nós
Que futuro têm os jovens numa Europa neoliberal, desindustrializada e a viver nos subúrbios das grandes cidades, criados em agregados familiares desestruturados, com pais separados, de emigrantes sobrevivendo de trabalhos subalternos e mal remunerados, ou espreitando uma oportunidade pelos labirínticos percursos da prostituição?
Rui Carlos Mateus
Que horizontes seguros, fraternos, estruturados lhes serão possíveis? Que escola pública prepara os jovens deserdados para os grandes embates com uma sociedade que já não esconde as chocantes desigualdades, que se alimenta da violência, da ignorância e da pobreza de grandes camadas da população, para perpectuar a exploração? O que oferece hoje esta Europa, corroída pela ganância dos interesses que o neoliberalismo criou, às margens que gerou na ânsia rapace do poder ungido no dinheiro, para além da fome e da miséria que inculcou, como abjecta marca do seu domínio, no corpo social dos povos que a constituem? Essa deriva suicidária, até onde poderá ir?
O desvairado domínio do liberalismo, incensado por jovens tecnocratas bem-nascidos, gerará, se os deixarmos aprofundar as suas ambições totalitárias, um imenso exército de pobres, de excluídos e de jovens tristes e sem futuro, controlados por uma poderosa e inteligente máquina cibernética, securitária, de controlo e domínio sobre os explorados, os seus imaginários e o seu direito à justiça e à revolta. O neoliberalismo gerará, se não for travado, uma sociedade de autómatos, de obedientes, marginais de uma sociedade de elites, aos quais será introduzido, no braço, diz-nos a autora da peça O Futuro Já Era, um chip, ou seja, um circuito integrado que os submeterá. Eis o Admirável Mundo Novo, essa distopia que Aldous Huxley criou em 1932 e que parece agora, nesta peça e nas páginas do romance GMM – Brainfuck em que o futuro já era, se baseia, ambos de Sibylle Berg, querer tornar-se realidade numa sociedade que deixou de sonhar os dias largos e justos da utopia possível, tais os medos que enformam as massas num mundo digitalmente controlado? Que espaço nos resta para a rebeldia, para uma nova Epígrafe à arte de furtar, como a de Jorge de Sena?
As personagens desta peça de Sibylle Berg, uma escritora suíça, de língua alemã, que se tem revelado uma dramaturga de primeiro plano na cultura teatral europeia, investindo na denúncia dos graves problemas sociais e políticos da sociedade capitalista, assenta no percurso de quatro jovens da geração da «revolução digital», e da sua incapacidade, por motivos diversos (familiares, económicos, culturais), de se integrar numa sociedade de consumo dominada pelas «redes sociais», pelos imaginários da Netflix, pela IA, que os marginaliza, coartando-lhes a capacidade crítica, dedutiva e reflexiva, ao mesmo tempo que os vai controlando com os mecanismos de cerco que o fascismo neoliberal emergente (a frase é da autora), vai criando para os vigiar, fornecendo-lhes em troca as migalhas que sobram dos grandes banquetes dos poderosos. Esse poder que se compraz na criação de uma corte de massas anódinas e ignorantes: fáceis de dominar, portanto.
Peter Kleinert, encenador alemão, já conhecido do público que frequenta os espectáculos da CTA, onde encenou textos de Brecht e Shakespeare, dirige com rigor e desenvoltura este texto distópico, na esteira de Huxley e do 1984 de Orwell, mas careando elementos contemporâneos numa inquietante visão da realidade que já hoje, de forma subtil, intuímos (as grandes ditaduras começam por morder como se fossem beijos), que Kleinert constrói e desenvolve num cenário criado por Céline Demars.
Quatro jovens actores passeiam-se pelo palco como território conquistado, chão que lhes pertence, denunciando já grandes capacidades técnicas e criativas, no domínio do corpo e da voz: Cecília Borges, Inês Saramago, Diana Linguiça, Jacinta Correia. A Erica Rodrigues e Diogo Bach cabe a tarefa mais ingrata: a de se transformarem ao longo da peça em vários bonecos/personagens, fazendo-o com rigor e sentido crítico.
A música, que percorre todo o texto e o comenta de forma interventiva (como Brecht faz), transmite-nos a revolta, o apaziguamento e o lirismo. Chullage, inspirado na batida do grime britânico, dá-nos momentos marcantes desta sonoridade, desta música de revolta, saída do surro, dos bas-fonds londrinos, de uma nova cultura pop e aqui recriada com vigor por um músico que domina perfeitamente o género.
Ainda nos será possível pôr a alegria em cena? A resposta depende de nós.