A Saúde em Portugal: o antes e o depois do 25 de Abril

O SNS: propostas para a sua defesa

Aguinaldo Cabral (Médico)

Até ao 25 de Abril, Portugal era, pelos padrões de saúde, um «país não civilizado»

I. A Saúde durante o fascismo.

As características demográfico-sanitárias da população portuguesa eram próprias de um país subdesenvolvido, com crescimento moderado da população, devido a uma mortalidade geral estacionária, uma natalidade em decrescendo, uma migração alta das áreas rurais para os centros metropolitanos e forte emigração para países mais desenvolvidos, particularmente da Europa. Acresce que a morbilidade e mortalidade infantis muito elevadas colocavam Portugal na categoria de «país não civilizado». Baixo nível de Saúde é sinónimo de atraso económico, cultural, político e social que agudizam o círculo vicioso pobreza-doença.

As desigualdades no que concerne ao acesso aos meios de saúde e tratamento eram enormes, dramaticamente desfavoráveis aos mais pobres, que sofriam de doenças correspondentes a um padrão de acentuado atraso social. Os serviços de saúde não tinham uma organização técnica e administrativa capaz de enfrentar as necessidades. Existia, sim, uma série de instituições paralelas, particulares, semi-oficiais e oficiais, sem coordenação, sem unidade de acção e de meios. A população não dispunha de uma cobertura geral de saúde e servia-se, conforme as posses, dos médicos particulares ou dos escassos serviços assistenciais existentes, na linha de uma medicina caritativa ou comercial. A Previdência organizou, por sua vez, os cuidados médicos para grupos específicos de trabalhadores e suas famílias.

Vejamos alguns indicadores, mesmo nas vésperas do 25 de Abril. Em 1973, a mortalidade geral foi de 11,1 por mil, a natalidade de 20,1 por mil, a mortalidade infantil de 44,8 por mil nados vivos (em 1961 foi de 88,8 !!), a mortalidade materna atingiu os 59 por 100 mil nados vivos. A esperança de vida ao nascer era: H=64,7 anos, M=71,1 anos. De salientar ainda: 82,7% da população não possuía sistema de esgotos e só 40% tinham água ao domicílio; 61% não tinham recolha de lixos urbanos e, na habitação, apenas 20% possuíam cozinha, retrete e casa de banho. Em 1974, os partos sem assistência eram 17,7% e os hospitalares de 56,4 %. Na década de 70, o número de analfabetos rondava os 36% da população.

Em 1971, surgiu a Reforma de Gonçalves Ferreira que defendeu a existência de um sistema de saúde organizado, o estabelecimento de carreiras profissionais, uma política unitária de saúde; são criados os Centros de Saúde (CS) e afirma-se o direito à saúde como um direito de personalidade.

Num país sem eleições livres, sem liberdade, houve sempre homens e mulheres, mais novos ou mais velhos, que lutaram contra o regime fascista, que persistia. Também ocorreram inúmeras acções importantes dos profissionais de Saúde, com realce para as lutas médicas, como o Movimento dos Novos pelas Carreiras Médicas. Com o Relatório sobre as Carreiras Médicas, aprovado em 1961, não mais a Saúde ficou como dantes. O documento apontava para uma reforma integral do sistema de Saúde e a criação de um SNS, tendo como inspiração o inglês.


II. A importância do 25 de Abril na Saúde.

Após o 25 de Abril, muito se alterou no campo da Saúde, como era inevitável e necessário. São lançadas as Bases de um SNS da Secretaria de Estado da Saúde em concordância com o DL 203/74, que afirmava: «compete ao Governo Provisório o lançamento das bases para a criação do SNS ao qual tenham acesso todos os cidadãos.» Muitos não saberão, ou não recordam, que ocorreu em 1975 uma Campanha de Acção Cívica e de Dinamização Cultural, levada a cabo pela 5.ª Divisão do MFA, que permitiu uma actuação médico-sanitária junto das populações muito carenciadas do interior do País. É considerada precursora do Serviço Médico à Periferia (SMP).

O SMP (1975-1983) teve o apoio do IV Governo Provisório e resultou numa experiência inédita, muito marcante para as populações e médicos, e levou à implantação de valências como a Saúde Infantil e Escolar, ao Planeamento Familiar, ao rastreio da hipertensão, diabetes, ao cumprimento do Plano Nacional de Vacinação, aos cuidados de higiene, etc. Acção que teve reflexos positivos nos indicadores de Saúde, como a melhoria da Mortalidade Infantil que se registou nos anos 70-80, e na criação e aceitação do SNS. O SMP terminou com a criação da Carreira Médica (CM) de Clínica Geral e o surgimento dos Centros de Saúde (CS) de segunda geração.

Em 1975 é publicado o Relatório do Grupo de Trabalho para o Estudo da Carreira Médica Nacional, da DGH, trabalho colectivo de generalizada participação, que apontava para a necessidade de um SNS, a unificação da CM como pilar fundamental do SNS, também este unificado, fortemente descentralizado e regionalizado. O estabelecimento desta CM Nacional implicou a reclassificação, mediante critérios uniformes, aplicados por júris nacionais, de todos os profissionais a integrar na CM.

Em 1976, foi aprovada a Constituição da República Portuguesa (CRP), cujo Artigo 64 diz respeito à Saúde e foi um documento basilar do então jovem regime democrático. Externamente, realizou-se, em 1978, em Alma-Ata (Casaquistão) a Conferência Internacional sobre Cuidados de Saúde Primários, com 134 países presentes. A chamada Declaração de Alma-Ata teve um impacto significativo em muitos países, como Portugal, pela promoção da Saúde de todos os povos do mundo, e pela valorização dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Proclamou-se a Saúde como um direito humano fundamental, e os CSP como a base dos Serviços de Saúde.

Em 1979, foi aprovada a Lei 56/79, no V Governo Constitucional, que criou o SNS, com os votos favoráveis do PS, PCP, UDP e de um independente. É considerado uma das principais conquistas do 25 Abril. Em 1982, no VIII Governo Constitucional, iniciou-se o processo negocial para a elaboração do primeiro diploma legal, específico, das CM (DL 310/82), assinado pelo SES e pelos três sindicatos que compõem actualmente a FNAM. Houve contestação activa da direita e da OM (que defendiam um sistema de medicina convencionada). A Carreira de Enfermagem já tinha sido aprovada pelo DL 305/81. Ficaram consagradas três CM: hospitalar, saúde pública e de clínica geral, sendo esta última inovadora, inclusive em termos internacionais, com a introdução de médicos para garantir, de forma permanente, os cuidados de saúde em todos os concelhos. Em 1983, deu-se a criação do Ministério da Saúde, o primeiro em democracia, no IX Governo Constitucional. Em 1986, o clínico geral adquire o estatuto de médico de família.

Após os anos 90, a política neoliberal de destruição dos serviços públicos de saúde, desmantelamento da legislação laboral e dos direitos sociais, privatização dos serviços públicos (ameaçando até os CS!), começou a ter maior relevância na Saúde, e sucederam-se os ataques. Por exemplo, a Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90) abriu, claramente, as portas ao incremento do sector privado, e contribuiu para nova ofensiva contra o SNS e as CM. Foram instituídas as taxas moderadoras. A direita e os grupos económicos da Saúde perceberam que é pela desvalorização profissional e salarial dos profissionais do SNS que se criam as condições objectivas que conduzam à redução significativa da actividade do serviço público e à transferência progressiva de cuidados e de proventos económicos para o sector privado.

E é o que têm procurado fazer. Para o sector privado da Saúde, a procura do lucro, em prol dos acionistas, é prioritário.


III. Propostas para uma melhor Saúde em Portugal. Defesa do SNS.

A aprovação da Lei 56/79 concretizou o direito constitucional à Saúde através da criação de um SNS universal, geral e gratuito (mais tarde: parcialmente gratuito). O SNS, desde a sua criação, sofreu sucessivas tentativas de descaracterização e destruição, em prol dos serviços privados. Inclusive, houve uma tentativa de revogação da Lei, no Governo da AD, que o Tribunal Constitucional não aprovou. A Lei de Bases de 1990, claramente, defendia «o desenvolvimento do sector privado de saúde em concorrência com o sector público».

A situação política das últimas décadas tem exposto as políticas de subordinação aos interesses do grande capital e de submissão total aos ditames da UE, que prejudicam o desenvolvimento nacional, agravam desigualdades, limitam liberdades, desvalorizam salários, pensões e reformas, fragilizam serviços públicos e degradam o SNS. Em contrapartida, verifica-se um aumento escandaloso dos lucros dos grupos monopolistas: 25 milhões de euros de lucro por dia, e 12 milhões ganhos diariamente pela banca. 72% dos reformados auferem pensões inferiores a 500 euros! Mais de três milhões de trabalhadores ganham menos de mil euros mensais.

Contudo, em 2001 o Relatório Mundial da OMS colocou Portugal no 12.º lugar dos melhores SNS a nível mundial (à frente de Holanda, Grã-Bretanha, Suíça, Suécia, Alemanha, Canadá, EUA, entre outros). Também, a não esquecer, a actuação abnegada de todos os trabalhadores do SNS na recente pandemia, esforço e eficácia salientados a nível nacional e internacional.

Assim, salvar o SNS é um imperativo nacional! É, pois, necessário:

1. Planeamento rigoroso, regular, das necessidades em recursos humanos, económicos, tecnológicos, materiais e logísticos para a Saúde.

2. Recrutamento de profissionais em falta, com salários condignos, boas condições de trabalho, progressão e diferenciação. Existem 1,6-1,7 milhões de portugueses sem médico de família e muitos sem enfermeiro de família. Os médicos portugueses são dos mais mal pagos na Europa.

3. Melhoria dos cuidados de saúde de proximidade, com profissionais suficientes, e material mais moderno e/ou em falta, que permitam um diagnóstico das situações in loco, evitando, assim, a ida às urgências hospitalares de um número significativo de cidadãos.

4. Defesa activa do SNS e dos Serviços Públicos de Saúde. Defesa da gestão pública, participada, do SNS.

5. Defesa das Carreiras Profissionais da Saúde. Aumento dos salários e pensões dos profissionais da Saúde. Defesa do regime de dedicação exclusiva (opcional) no SNS. Recusa da dedicação «plena».

6. Contratação de mais médicos e enfermeiros. Evitar a saída destes profissionais para o sector privado. Tornar atractivo o trabalho no SNS, em termos profissionais e salariais.

7. Valorizar a Saúde Pública e os seus profissionais. Fomentar programas de promoção da Saúde e de prevenção da doença. Necessária uma estratégia nacional para a água (que se pretende pública), segurança hídrica, alterações climáticas (ondas de calor ou de frio intenso, e suas consequências na saúde) e ambientais, incluindo a poluição do ar, água, solos e alimentos.

8. Recusar a «municipalização» e a privatização dos Serviços Públicos, em especial na área da Saúde.

9. Defesa dos direitos de parentalidade.

10. Vigilância e protecção da Saúde Materno-Infantil. A mortalidade peri-natal e infantil tem uma relação directa com as situações de crise económica e financeira e as políticas de austeridade. Risco aumentado de nascimentos de baixo peso (

11. Promoção da informatização integral do SNS, com sistemas compatíveis, que contribuam para melhor articulação entre os diferentes níveis de prestação de cuidados, e o seu agendamento. Criar o Processo Clínico Electrónico Único.

12. Reabrir, com recursos humanos e demais equipamentos, instalações já existentes, mas encerradas, algumas de construção recente, que ficam em risco de degradação.

13. Denunciar e combater as transferências de dinheiros públicos, alocados à Saúde, para o sector privado. Recusar o «negócio da doença»: 8 mil milhões de euros públicos vão para os privados (ou seja, mais de metade do orçamento para a Saúde).

14. Denunciar os Novos Estatutos do SNS que, em contradição com a Lei de Bases da Saúde (2019), escancara as portas aos grupos económicos da Saúde e permite a integração, no SNS, de prestadores de serviços privados, e a gestão privada dos serviços do SNS, admite a «municipalização» da Saúde e impõe um regime de dedicação plena, muito desfavorável para os médicos.

15. Recusar o tipo de direcção bicéfala da Saúde. O histórico acerca do CEO do SNS, medida «inovadora» recentemente introduzida em Portugal, correspondeu sempre à destruição dos SNS (ex: Reino Unido).

16. Recusa do trabalho de médicos «sem acesso às especialidades», no SNS, e do recurso, muito elevado e oneroso, das empresas privadas que vendem trabalho médico.

17. Oposição a quaisquer medidas de privatização dos serviços públicos de Saúde.

18. Prevenção dos riscos profissionais e da violência sobre os profissionais de saúde, no local de trabalho.

19. Prevenção do burnout dos profissionais de saúde.

20. Vigiar e controlar rigorosamente o acesso e aplicação dos montantes do PRR, para a área da Saúde.





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