A Arte fascista faz mal à vista

Manuel Augusto Araújo

«deve-se recordar o que na cultura e nas artes o 25 de Abril tornou possível e o muito que ficou pelo caminho»

Estamos em vésperas de entrar no ano em que se comemora 50 anos da Revolução do 25 de Abril. Meio século em que muitas das portas que Abril abriu foram fechadas pelas políticas de direita que afanosamente as aferrolharam. Todas as revoluções defrontam imediatamente a contra-revolução que se manifesta de formas diversas muitas vezes mascaradas de ultra-revolucionárias. A Revolução do 25 de Abril não foi excepção até pelas suas características particulares de uma acção militar rapidamente impulsionada por movimentos populares, dando início ao que se caracterizou e foi sintetizado numa fórmula particularmente feliz e justa da aliança Povo-MFA.

Nesse contexto ninguém podia ficar indiferente. O universo cultural, que de forma esmagadoramente maioritária se opunha ao fascismo salazarista, sem a violência da censura, podia expressar-se em liberdade. As artes, ganha a liberdade de expressão, procuraram alcançar toda a população, democratizando a cultura.

Os artistas, em aliança com os protagonistas do 25 de Abril, desempenharam um papel crucial nesse cenário. Nas ruas multiplicaram-se os murais com fortes apelos políticos. Muitos realizados por artistas plásticos outros por populares que se juntavam a consagrados artistas. As paredes falavam, falavam dos justos anseios de um povo sujeito à mais longa ditadura na Europa. Lembre-se que antes a pintura nas ruas era exemplarmente reprimida, resumia-se a palavras de ordem que, com todos os riscos, militantes políticos escreviam recorrendo a maioria das vezes a nitrato de prata durante a noite invísivel que a luz solar pintava de um negro espesso.

No dia 28 de Maio de 1974, um grupo de artistas, Júlio Pomar, Vitor Palla, Rogério Ribeiro, Júlio Pereira, David Evans e Nuno San-Payo, invade o Palácio Foz, embrulham num pano negro com a inscrição Movimento Democrático dos Artistas Plásticos (MDAP) a imponente estátua de Salazar. Publicitaram uma palavra de ordem que não perdeu a actualidade: A Arte Fascista Faz Mal à Vista. Nos nossos dias não perdeu nem actualidade nem oportunidade quando se pretende, pretensão que tem óbvios objectivos políticos, que a cultura é um território neutro, em que direita e esquerda é um conceito obsoleto como se fosse possível, para escolher um exemplo paradigmático, que o Ouro do Reno de Wagner, seja escutado, interpretado e decifrado do mesmo modo por um homem de esquerda e um de direita.(1)

O MDAP, em 10 de Junho, então o malfadado Dia da Raça fascista, promove um mural que mobilizou 49 artistas que pintaram 49 quadrados, no quadrado 50 recordaram José Dias Coelho, escultor militante do PCP assassinado pela PIDE. Os propósitos do MDAP não se concretizaram como os seus fundadores pretendiam embora tivessem impactos não despiciendos.

Nos nossos dias, quando vamos comemorar 50 anos da Revolução de Abril, deve-se recordar o que na cultura e nas artes o 25 de Abril tornou possível e o muito que ficou pelo caminho. Evocar nunca com uma paralisia passadista mas com as urgências que os tempos que vivemos impõem quando as artes vivem uma crise disfarçada por uma actividade múltipla que maioritariamente se confunde com celebrações sociais no frenesim das modas e do mercado dos objectos de luxo que acaba por fazer tão mal à vista como a arte fascista. Que as memórias dos 50 anos de Abril sejam um catalisador do que as artes têm para dizer à vida, reinvestindo-as estética e politicamente, recuperando-as do deserto social desta sociedade, sem que a política dela se aproprie, desvirtuando-a.

(1) leia-se O Wagneriano Perfeito, George Bernard Shaw, Palimpsesto 2014

 



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