Casa na Duna, de Carlos de Oliveira
Casa na Duna é uma das obras-primas do neo-realismo
Casa na Duna, de Carlos de Oliveira, publicado em 1943, há 80 anos, portanto, ano em que saiu Fogo na Noite Escura, de Fernando Namora, e Alves Redol viu ser impedido de publicação, pela Censura, o seu romance Os Reinegros. Este romance maior do autor de Finisterra, foi objecto, ao longo das várias edições, de algumas revisões pontuais que constituíam prática, quanto a mim salutar, de Oliveira face à revisitação das suas obras, aquando de uma nova edição.1
Casa na Duna é uma metáfora inteligente e fecunda, de ponderosos e reflexivos sinais, sobre o capitalismo primitivo e rural, o latifúndio dos Paulos e as circunstâncias da sua decadência, substituído por outro mais eficaz e cruel, num mundo em contínua mudança. O capitalismo que se autodevora, como refere Anselm Jappe em A Sociedade Autofágica, que prescinde de humanidade para se impor e explorar sem remorsos os que o servem e produzem riqueza.
O universo romanesco de Carlos de Oliveira, o seu espaço da gândara, das suas raízes afectivas, as quintas construídas em charcos e terrenos arenosos, começa a declinar – esse declínio de um tempo velho e cristalizado em tradições e crenças, que o autor irá transportar, de modo mais claro, para Pequenos Burgueses e, numa abordagem mais intimista, para Uma Abelha na Chuva –, mesmo que nele a miséria e a fome permaneçam quase imutáveis. O que muda, o que conduz ao estertor da casa secular dos Paulos, não será tanto o modo de vida dos seus personagens, a inaptidão de Hilário para viver naquele mundo fechado, «No casarão da quinta falava-se pouco», ou de Mariano Paulo que não consegue assegurar, utilizando métodos ancestrais de trabalhar a terra – «O trabalho da quinta era feito com enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado à mão» –, que permitissem boas colheitas, aumentar salários e competir com outras explorações que se mecanizaram e floresceram.
Mesmo quando Mariano abandona a terra e se decide por outro negócio, que julga poder salvar-lhe a herança recebida dos seus ancestrais, parte sem arrojo, de um modo quase artesanal. A fábrica de telha que constrói irá ser engolida pela concorrência, pelas grandes e mecanizadas fábricas da Pampilhosa, que vendem barato, sobretudo a partir do momento em que a nova estrada de macadame, que une a aldeia de Corrocovo a Corgos, foi inaugurada. A nova estrada irá permitir que as camionetas por ali passem e transportem mais rapidamente as telhas para os lugares da gândara.
A vida é um jogo cruel e Mariano Paulo sabe-o e perdeu a jogada, a última cartada. Agora que o filho, o valdevino Hilário, «foi encontrado com a enxada que o matou enterrada de alto a baixo da cabeça», mais nada lhe resta, a quinta dos Paulos encher-se-á de tojos e silvas, o forno do telhal apagar-se-á sem honra nem glória, a fome caminhará pela aldeia ainda mais fria e maligna nessas terras de mãe pobre/de gente pobre, alguns emigrarão como Luciano Taipa, Guilhermina continuará a abrir a porta do casebre aos homens que a solidão acossa, Lobisomem arrastará a perna gangrenada pelos lameiros, o Dr. Seabra talvez ainda acredite em tempos justos, Firmino tirará o chapéu aos mandantes enquanto Mariano Paulo «Abre a despensa e pega na primeira lata de petróleo». Se perdeu a jogada, a quinta e o poder, que não perca a dignidade. Só o fogo, elemento mítico que tudo purifica, apagará a passagem dos Paulos por esse chão infértil, por essa casa em ruínas, construída de modo precário, como a vida, sobre dunas: que venha a morte depois/fria como a luz dos astros/que nos importa morrer/se não morrermos de rastros?
Carlos de Oliveira serviu-se desta história, diz-nos Mário Dionísio, «para criar uma nova realidade», não já esse capitalismo feudal, aos rés do humano, mas o outro que se anuncia, que já está a nascer sobre as suas ruínas: a barbárie da exploração que tomará proporções gigantescas, da humanidade «supérflua», que Oliveira personifica em Hilário.
Casa na Duna é não apenas uma das obras-primas do neo-realismo, esse movimento literário, cultural e político que foi «tão vasto e revolucionário como o renascimento», como escreveu Dionísio, esta obra define Carlos de Oliveira como o escritor que melhor soube entender e expor na ficção o entrechocar das estruturas sociais.
Carlos de Oliveira era um mestre e como tal deve ser amado e lido. Um poeta sublime, no dizer de Manuel Gusmão.
1 Nesta crónica utilizei a 3ª. edição de Casa na Duna, com prefácio-estudo de Mário Dionísio, publicada em 1964, pela Portugália.