Quem ganha e quem perde com a «concorrência» fiscal

O fim dos benefícios fiscais de não residentes motiva uma campanha na comunicação social, para manter ao máximo esse regime. A argumentação é falsa e procura ocultar os resultados desses benefícios.

O resultado final é uma perda de receita fiscal em todos os estados

Está a ser vendida uma ideia simples: milhares de «investidores» ameaçam sair do País ou não investir cá, por causa do fim desse benefício, e irão para outros países que ainda oferecem umaregalia similar.

Para manter os «descontos», dizem-nos que mais vale um pássaro na mão do que muitos a voar, ou seja, é melhor cativar o «investimento», a troco de cobrar pouco imposto, porque nunca haverá maneira de receber o volumoso imposto teórico que essas pessoas deveriam pagar e porque, sem elas em Portugal, perde-se o seu «investimento».

O argumento é falso, sob todas as perspectivas, mas importa abordá-las.

Qual investimento?

Desde logo, é preciso ir ver, no concreto, que investimento resultou desse benefício fiscal.

Engordaram os escritório de advogados que se especializaram em providenciar um mecanismo de elisão fiscal (ou seja, fuga aos impostos com cobertura legal) e que, com o fim dessa solução, perderão alguns clientes.

Mas a maioria do «investimento» realizado pelos não residentes beneficiados foi no imobiliário. Juntamente com os compradores de «vistos gold», contribuíram inegavelmente para a escalada dos preços (não sendo, nem de perto, os principais responsáveis) e para o desvio da capacidade de construção rumo às gamas altas. Claro que, com toda esta especulação, há quem tenha ganho: os senhorios – alguma coisa –, e os fundos imobiliários – muito. Mas o País nada ganhou e muita gente perdeu bastante.

Contas dos paraísos

É certo que, por esta via, algum imposto é pago em Portugal e não seria pago aqui de outra forma. É essa, aliás, a remuneração do paraíso fiscal. Mas, se é verdade que «atraímos» algum imposto, por usar práticas dignas de paraísos fiscais, também é verdade que isso legitima a existência de iguais práticas noutros países. Para as contas serem certas, é preciso contabilizar quanto se perde.

Ao dinheiro que o Estado português recebepor se assemelhar a um paraíso fiscal é preciso descontar aquilo que perde para outros paraísos fiscais, com práticas similares ou até mais graves. E perde muito mais. Calcula-se que as perdas nacionais ultrapassem os mil milhões de euros de receita fiscal a cada ano.

Confrontados com tais factos, os defensores do regime logo vêm defender que esse problema resolve-se, dando ainda mais benefícios, para «atrair» mais rendimentos à procura de fugir aos impostos.

Isto é o mercado da elisão fiscal a funcionar, é a concorrência entre paraísos fiscais! Só que estarem vários estados a concorrer, para verem quem mais atrai gente que quer fugir aos impostos, é uma «corrida para zero» – o limite dessa corrida é o desconto total.

Este é um uso que deveria ser combatido por uma acção coordenada dos estados – até porque o resultado final dessa «corrida para zero» é uma perda de receita fiscal em todos os estados, e não apenas nos que concedem maiores benefícios.

Quem mais tem mais ganha

Com a «corrida para zero», quem ganha é sempre quem tem rendimentos muito elevados, quem tem rendimentos bastantes para fugir aos impostos sobre o rendimento (singular ou colectivo). E quanto mais rendimentos tiver, mais ganha.

Bastaria esta conclusão lógica, para se perceber que quem mais ganha são as grandes multinacionais e as grandes fortunas. São elas os grandes beneficiários da concorrência fiscal e os seus grandes impulsionadores. Até há estudos sobre isso.

Por exemplo, o estudo «Profit-shifting Frictions and the Geography of Multinational Activity» (Fricções da transferência de lucros e a geografia da actividade das multinacionais). Analisa o impacto do desvio de lucros, dentro das multinacionais, para paraísos fiscais, e fornece dados importantes, tais como:

Entre 1975 e 2019, os lucros das grandes multinacionais passaram de 15% para 20% do rendimento global, ao mesmo tempo que a taxa efectiva de imposto pago por elas se reduziu num terço;

Desses rendimentos, a parte originada fora do país sede da multinacional cresceu de 4% para 18%, tendo esta evolução ocorrido essencialmente no século XXI;

A parte dos lucros das multinacionais desviada para paraísos fiscais passou de 2% em 1970 para 37% em 2019; e a parte dos lucros mundiais desviada para paraísos fiscais passou de 0,1% para 7%;

O imposto perdido, devido a estas práticas, passou de 0,1% nos anos 70, para 10% em 2019.

A estes 10% de elisão fiscal, só por esta prática de rotação de lucros, há que somar o efeito nas políticas fiscais dos estados, levando-os a uma progressiva redução das taxas de IRC (baixar o imposto, para que paguem algum, é sempre um dos argumentos colocados, mesmo não sendo a verdadeira razão). Entre 2000 e 2021, foram reduzidas as taxas de IRC em 94 de 111 jurisdições no mundo (OCDE: Corporate Tax Policy, Third Edition).

A «corrida para zero», seja nos rendimentos das empresas ou dos indivíduos, só tem dois resultados: redução das receitas fiscais de todos os estados e redução das despesas fiscais dos mais ricos. O primeiro arrasta ainda uma degradação dos serviços públicos. O segundo consolida o agravamento da desigual distribuição da riqueza gerada.

E se isto acabar?

A generalidade dos trabalhadores e das PME não tem qualquer hipótese de jogar o jogo da elisão fiscal. É preciso ter escala.

Travar estes benefícios fiscais e impor, aos detentores dos maiores rendimentos, o justo pagamento de impostos beneficiará, em primeiro lugar, aqueles que acabam por pagar mais impostos, seja no IRS ou no IRC, seja no IUC ou nos sacos plásticos. É que pagam mais para substituir aquilo que é perdoado aos mais ricos.




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