Os Pescadores, de Raul Brandão – o espanto de ver e sentir

Domingos Lobo

Em Os Pescadores temos o profundo humanismo de uma obra ímpar

A nossa mais atenta literatura às questões sociais, ao mundo vasto dos humilhados e ofendidos, com os autores neorrealistas como vanguarda dessa incursão por territórios de difícil abordagem literária, dado que a omnipresente censura vigiava de perto os textos e os autores que teorizavam as condições de vida e de trabalho do povo miúdo, num país onde a miséria e a exploração campeavam. O mar, e quem nele trabalha, foi um dos temas mais abordados por esses autores: Alves Redol, com Uma Fenda Na Muralha, sobre os pescadores da Nazaré; Alexandre Cabral e Romeu Correia, com Fonte da Telha e Calamento, ambos sobre a arte xávega nos mares da Costa de Caparica; Bernardo Santareno, com o livro de poemas Romances do Mar, o livro que descreve a pesca do bacalhau em Nos Mares do Fim do Mundo e a peça O Lugre; a peça O Mar, de Miguel Torgae Viúvas de Vivos, esse notável romance de Joaquim Lagoeiro sobre as mulheres que na praia da Vieira aguardavam os maridos que partiram para os mares da América e nunca mais voltaram.

De tudo isto nos fala, com a sua poderosa forma descritiva, a arte superior de narrar a metafísica da dor, num português de água puríssima, um dos autores que melhor descreveram esse universo de enguiços e de crenças, de miséria e morte, esse fadário de dores, como refere Óscar Lopes, como o fez Raul Brandão nessa obra-prima da nossa literatura simbolista que é Os Pescadores, obra da qual se cumprem 100 anos sobre a sua 1ª. edição, em 2023. Obra que permanece imutável, a estremecer-nos e a revelar-nos, de modo asseverativo, esse quase ignoto universo.

Raul Brandão nasceu na Foz do Douro, em 1867 e foi, logo no dealbar do século XX, um dos mais entusiastas divulgadores dos novelistas russos da época, nomeadamente de Gogol e Dostoiévski. O patético, o ridículo e o decadentismo, a linguagem poética, percorrem a sua obra em textos como Os Pobres, Húmus e Os Pescadores, que constituem a trilogia principal do autor de O Gebo e a Sombra, no que à análise das condições de vida e de trabalho dos excluídos diz respeito. Nenhum outro autor do nosso simbolismo, António Nobre ou Cesário Verde, se debruçou com igual argúcia e capacidade expositiva sobre a enorme massa de trabalhadores ignorados pelos poderes, até pelos próceres da República, como Brandão o fez, mesmo quando o louco e o grotesco, como acontece em O Doido e a Morte, uma das suas mais representadas peças, invadem o seu discurso. Há nele uma permanente preocupação pelos mais pobres, um profundo humanismo, o olhar solidário e denunciador desse mundo dos Pobres de Pedir, onde a ternura, a revolta e a emoção se expressam em páginas do melhor que a nossa literatura produziu: e a boca, só com um dente, a escorrer ternura (p.100).

Em Os Pescadores, Raul Brandão vai percorrer toda a costa de Portugal, começando na sua Foz do Douro natal e terminando em Sagres, com demorada passagem por Olhão, que primorosamente descreve, registando as dores, o sofrimento, as artes de pesca, a vida e os clamores dos homens que lavram o mar, os que perdem nas tabernas a escassa féria, a vasta prole à míngua e a força das mulheres que aguentam essa barca da vida sempre em mar revolto, onde o pão, como a sardinha ou a pescada, não abunda: Todas as populações de pescadores que conheço estão arruinadas. Em outra passagem, denunciando as práticas dos governantes: Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira-mar, para enriquecer meia-dúzia de felizes. Sobre os pescadores de Sesimbra, Setúbal e Caparica, diz-nos Brandão a páginas 167: Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, os outros ganham-lhe o pão: recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam-lhe a viúva e os filhos, entregando-lhe o ganho que ele tinha em vida.

A editora Página a Página teve, na edição desta obra fundamental de Raul Brandão (José Gomes Ferreira, considerava o autor de El-Rei Junot, um dos seus mestres), que assinala o centenário da publicação de Os Pescadores, um particular cuidado ao incluir nele as magníficas ilustrações de Marta Nunes e o prefácio de um profundo conhecedor destes trabalhos no mar e seus meandros, o presidente do Conselho de Administração da Mútua dos Pescadores, João Delgado.

Para além do prazer da leitura, dessa teia de sonho, que envolve a excelente prosa de Raul Brandão, temos o profundo humanismo de uma obra ímpar.

 



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