Espinosa e Leibniz, de António Borges Coelho

Domingos Lobo

Espinosa e Leibniz é uma ferramenta necessária para entendermos o nosso tempo

Ainda Abril estava a um ano e meses de acontecer, ouvíamos, num disco precioso e raro de Luís Cília, um poema de António Borges Coelho que nos dizia da esperança libertária e dos dias de clausura em Peniche: sou barco abandonado/na praia ao pé do mar/e os pensamentos são meninos a brincar […] Ó mar, venha a onda forte/por cima do areal/e os barcos abandonados/voltarão a Portugal. Adriano Correia de Oliveira cantaria também, com a sua voz que estremecia o silêncio compungido desses tempos, este belo poema do autor de A Revolução de 1383, nosso livro de cabeceira nesse longínquo ano de 1963.

Outros livros se seguiram, Portugal na Espanha Árabe (1972), Inquisição de Évora 1533-1668 (1987), estudo pioneiro sobre esse período negro da nossa história, culminando nesse projecto incontornável do prestigiado historiador que é a sua História de Portugal, da qual foram publicados sete volumes, publicados entre 2010 e 2022, sendo o primeiro a descrição do tempo medieval da Península, das nossas raízes históricas, políticas e sociais, Donde Viemos, até ao último, que trata, numa visão contemporânea e progressista, de Portugal na Europa das Luzes.

Pelo caminho, longo e difícil, pontuado por perseguições da PIDE, que o levaram ao encarceramento no Aljube e em Peniche, Borges Coelho, num labor contínuo e prolífico, publicou três livros de poemas, Ponte Submersa, (1969), No Mar Oceano (1983) e Ao Rés da Terra (2001); dois textos de teatro, Príncipe Perfeito (1989) e Sobre os Rios da Babilónia (2001); um singular romance, Tempo de Lacraus (1999), que não mereceu, por parte da crítica, a atenção que o tema e a desenvolta capacidade narrativa do autor justificavam. Da sua vasta produção ensaística saliento ainda os dois livros que dedicou à vida e obra de João de Barros; os vários ensaios sobre o questionamento histórico e crítico de Portugal, os judeus e os cristãos novos; o seu estudo sobre Os Lusíadas, texto obrigatório para o entendimento integral e dialéctico do épico de Camões, e Os Filipes. Um conjunto de títulos essenciais para o cabal conhecimento político, histórico e social do país, da idade média ao iluminismo, que fazem parte de um espólio literário que atinge, actualmente, 37 títulos e percorre todos os géneros.

Espinosa e Leibniz é o mais recente ensaio de António Borges Coelho sobre dois dos mais importantes filósofos do século XVII e de todos os tempos. Parte da matéria ensaística que o autor desenvolve neste livro, nomeadamente no que a Leibniz diz respeito, reproduz o livro Leibniz, a Teoria da Ciência, de 1969, e escritos de Leibniz, nomeadamente Discurso de Metafísica e Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano. A Ética de Espinosa e a Metafísica de Leibniz, juntos num diálogo dialéctico salutar, lúcido e claríssimo. Dois filósofos que fazem parte do universo teórico do autor de Cristãos – Novos Judeus e os Novos Argonautas.

Sobre Espinosa, o texto presente percorre, não apenas as origens portuguesas do autor de Ética, mas interpreta, à luz dos conhecimentos contemporâneos, o que no pensamento do filósofo ainda hoje é vital: «Até aqui, expus a minha leitura das ideias de Espinosa sobre o que chamo “sistemas ideológico-práticos de obediência”. Usei este conceito para subverter a arquitectura dos textos originais e tentar penetrar nas ideias do sistema.» […] «A utopia acompanha e ilumina os nossos passos, são o nosso resplendor, mesmo quando a negamos e proclamamos o fim das utopias. Também elas iluminaram o filósofo que procurava emendar o entendimento. Em primeiro lugar, a utopia marcou a sua “fé” no poder ilimitado da razão. Todos os homens são insolentes quando dominam e todos se tornam terríveis quando mantidos no medo, mas acredita que a razão é capaz de conduzir o combate contra os sentimentos e moderá-los.» (p.94)

Seguindo Descartes, um dos filósofos que o influenciou, Leibniz tenta ampliar o sentido(s) da frase lapidar do mestre: penso, logo existo. «Pode-se sempre dizer que esta preposição – Existo – é de última evidência, sendo uma preposição que não poderia ser provada por qualquer outra ou então uma verdade imediata. E afirmar Eu penso, portanto eu sou, não é provar propriamente a existência pelo pensamento, dado que pensar e ser pensante é a mesma coisa. E afirmar eu sou pensante é já dizer eu sou.»

Num tempo em que as Humanidades, e a filosofia em particular, estão cada vez mais arredias, ou subalimentadas, nos currículos do nosso ensino secundário (pensar é perigoso), um livro como Espinosa e Leibniz, de António Borges Coelho, que nos desafia a pensar e a Ser é, não só imprescindível, como ferramenta necessária para entendermos o nosso tempo, e o que nele é obscuro e torpe e vencermos as caminhadas do porvir.

 



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