Cantar os Verdes Anos da História
A Canção Verdes Anos, gravada há 60 anos, transformou-se em ferramenta de identidade musical dos guitarristas
Um Ré foi lançado no silêncio. Sozinho tivesse soado e, assim mesmo, cumpriria o seu dever de encantamento. Um apenas Ré – timbre de corda dupla esticada em caixa de madeira e duas mãos, revelando a oficina de Carlos Paredes. Uma só nota condensando o engenho de tocadores e violeiros que o mundo andou, até que se chegasse ali. Ritmo, ainda só o da oscilação do dedo anelar premindo as cordas, abrindo caminho, já a seguir, à mão cúmplice de Fernando Alvim que irá marcar o baile sonoro da Canção Verdes Anos, que aquele Ré iniciou.
A Canção Verdes Anos conheceu estreia pública no Cine-Teatro São Luiz, em Lisboa, corria o ano de 1963 e uma brisa, ainda que reprimida pelo salazarismo, de renovação da linguagem do cinema português. Paulo Rocha, o jovem argumentista e realizador de Os Verdes Anos, propôs a Carlos Paredes o uso da linguagem renovada da sua Guitarra na ilustração de uma Lisboa retratada entre as hortas permanecentes e as avenidas em expansão, habitadas por personagens que não eram os patuscos do cinema de massas nacional, nem as celebradas vedetas de Hollywood. Diria Carlos Paredes: «Muitos jovens vinham de outras terras para tentarem a sorte em Lisboa. Isso tinha para mim um grande interesse humano e serviu de inspiração a muitas das minhas músicas. Eram jovens completamente marginalizados, empregadas domésticas, de lojas. Eram precisamente essas pessoas com que eu simpatizava profundamente, pela sua simplicidade.»
Jorge Leitão Ramos deixaria escrito, mais perto do nosso tempo, que «visto hoje, Os Verdes Anos tem o grande mérito de ser um documento precioso sobre Lisboa do princípio dos anos 60, o seu provincianismo, o desespero e a sufocação de uma geração jovem. Para o cinema, o filme revelava ainda a sensibilidade de um compositor (Carlos Paredes) que construiu um tema musical que ficaria célebre». É, pois, ao som desse tema célebre que Júlio (Rui Gomes) e Ilda (Isabel Ruth) dançam ao longo do salão de um velho palacete do Largo Conde Barão, numa versão em que Teresa Paula Brito canta os versos de Pedro Támen, acompanhada pelo Conjunto de Jorge Machado.
Os Verdes Anos seria filme celebrado, premiado e, há cerca de uma década, restaurado e acrescentado das cenas que a Censura cortara, permanecendo um marco da cinematografia portuguesa – pela imagem e pela música. Já a Canção Verdes Anos, na sua versão seminal, viria a ser fixada no álbum «Guitarra Portuguesa» (1967), gravado no estúdio de Paço de Arcos da Valentim de Carvalho. Coube ao engenheiro de som Hugo Ribeiro, nome maior do registo fonográfico da música portuguesa, imortalizar a música, a interpretação, que Carlos Paredes e Fernando Alvim deixariam para abundante e permanente reinterpretação e recriação.
A Canção Verdes Anos transformou-se em matriz – ferramenta de identidade musical dos guitarristas, educadora de expressividade, lugar da Arte em que a competência técnica, sendo essencial, não é finalidade. Depois de Teresa Paula Brito, a cantora do filme de Paulo Rocha, gravaram a Canção de Paredes e Támen, Amália Rodrigues (em registo de espectáculo), Mísia, Dulce Pontes, Mariana Abrunheiro; releram-na (enquanto matéria-prima) os guitarristas Pedro Caldeira Cabral e Pedro Jóia, os grupos Belle Chase Hotel e Quinteto de Coimbra, o quarteto de cordas norte-americano Kronos Quartet, o DJ Stereossauro, a banda Budda Power Blues, o Sexteto de Bernardo Moreira e demais herdeiros do Paredes que o celebram nos palcos de tábuas (ou cimento) de muitos lados e nas janelas das plataformas electrónicas.
No princípio era um Ré, suspenso no silêncio – uma guitarra militante a juntar as demais vozes que, nos verdes anos da História, conquistam felicidades.