Modalidades de cinema amador

Marta Pinho Alves

No contexto da família, filmar nem sempre era resultado da pretensão de fazer um filme, mas de estreitar laços

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O cinema amador assumiu uma forma dominante que definiu a quase totalidade das práticas e possibilidades afectas a este território e muitas das concepções acerca do mesmo. Esta é a que se conhece habitualmente pelas designações «filme familiar», «filme doméstico» ou «home movie». Isto não significou, contudo, a sua redução a uma manifestação unívoca. Ao longo da sua história, com determinadas intenções e em territórios mais ou menos delimitados, várias modalidades deste cinema foram emergindo, muitas vezes também manifestando contaminações entre os seus protagonistas, exercícios e resultados.

Roger Odin, autor pioneiro no estudo académico do cinema amador, propôs-se identificar as tipologias cinemáticas associadas àquela categoria assinalando três espaços de realização e difusão distintos. O autor designou estes diferentes territórios por «espaço familiar», «espaço amador» e «espaço do cinema independente» (ou do «cinema outro»). Para a última subcategoria, Odin efectuou ainda uma nova divisão em função dos seus componentes e agentes, apontando três correntes aí enquadráveis: a «corrente formalista», onde integrou o designado cinema experimental; a «corrente engajada», onde situou um cinema dedicado a causas sociais e políticas, e a «corrente pessoal» (a que alternativamente chamou «cinema ou vídeo do eu»), onde enquadrou o registo autobiográfico.

No contexto do «espaço familiar», Odin posicionou o cinema vulgarmente designado por cinema doméstico ou familiar, a tipologia de cinema amador que, como antes se apontou, foi muitas vezes entendida como a sua única manifestação, razão que originou que aquela designação fosse frequentemente utilizada para aludir-lhe metonimicamente. O cinema doméstico pôde, durante muito tempo, ser observado como a tipologia de cinema amador que melhor suportou as oposições traçadas entre este e o cinema profissional.

Tentando explicitar esta ideia, Roger Odin descreveu o realizador clássico de filmes domésticos como o «amador» tipo: o cinema não era sua actividade profissional, este não vivia da sua prática (pelo contrário, custava-lhe dinheiro exercer esta atividade); não tinha formação, nem competências específicas para a actividade; filmava em formatos reduzidos, durante o seu tempo de lazer; as suas produções não eram difundidas fora do contexto familiar.

Mais ainda, este não se colocava as mesmas questões que o profissional (como filmar, montar, narrar, etc.); não partilhava dos mesmos interesses (financeiros, criativos, sociais, de reconhecimento) e não participava dos mesmos conflitos e relações de força.

Por estas razões, os registos realizados naquele âmbito eram dominantemente caracterizados como episódicos e frequentemente relacionados com eventos familiares de celebração. Os filmes caseiros estavam ligados à memória e à construção do contexto familiar.

No mesmo sentido, Richard Chalfen, antropólogo que se dedicou ao estudo do mesmo tópico, afirmou que, no contexto da família, filmar nem sempre era resultado da pretensão de fazer um filme, mas antes algo que tinha como propósito estreitar laços entre os membros do grupo familiar. Esta intenção justificava que os registos obtidos apresentassem dominantemente uma visão idealizada, depurada, que excluía a banalidade do quotidiano.

Corroborando esta noção, escreveu Michelle Citron, cineasta, em Home Movies and Other Necessary Fictions: «Nós filmamos o jantar de Natal com a família e não a refeição em que comemos sozinhos; as festas de aniversário, não as vistas às urgências do hospital; os primeiros passos do bebé e não a discussão com o adolescente; as férias, não o trabalho; as festas de casamento, não a assinatura dos papéis do divórcio; nascimentos e não funerais.»

Importa pensar estas categorias e definições e o seu potencial enquadrador da reflexão no tempo das redes sociais e do TikTok. É a nossa proposta para um próximo texto.

 



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