Reparações
A hegemonia cultural do imperialismo significa que os EUA espirram e a Europa constipa-se. Era bom se isto só quisesse dizer que eles produzem as séries, a música, os famosos, os hábitos, os estilos de vida e os gostos que nós consumimos. Mas não é só a língua inglesa que ocupa, às vezes com frases inteiras, o discurso dos colonizados mentais: o imperialismo produz ideias que, munidas de deslumbrantes novas categorias, moralismos dogmáticos e confabulações idealistas, invadem a agenda política portuguesa, invariavelmente com um pequeno atraso, quase sempre adaptadas a martelo.
Antes que as franquícias lusas da academia imperial copiem a receita para o menu da nossa opinião pública, aqui ficam os ingredientes, e já agora os efeitos secundários, da última tendência dos liberais estado-unidenses: as reparações históricas. Há uma semana, o comité criado para o efeito pelo Estado da Califórnia abriu a porta à compensação dos afro-americanos por séculos de crimes inomináveis, da escravatura, aos linchamentos, ao terror do racismo às discriminações que perduram até aos nossos dias. Os legisladores californianos terão agora de se pronunciar sobre as mais de cem recomendações, entre as quais o cancelamento de dívidas, isenção de propinas no ensino superior e até indemnizações em dinheiro.
Como é apanágio da cultura liberal estado-unidense, há uma corrida de velocidade até à superioridade moral na opinião pública, não há uma discussão: quem não concorda com as reparações é automaticamente catalogado como racista, o que os racistas muito agradecem. Os racistas são, de facto, os outros grandes beneficiários das reparações, que lhes valem um poderoso trunfo retórico junto de milhões de trabalhadores brancos brutalmente explorados, endividados, quase analfabetos, abandonados pelo Estado, a que os liberais chamam «privilegiados».
Os mesmos liberais que recorrem ao Congresso, aos tribunais e à polícia para conter aumentos salariais, criar um serviço nacional de Saúde público ou democratizar o Ensino Superior para todos os trabalhadores, estão mortinhos por pôr todos os trabalhadores a pagar a factura histórica dos crimes cometidos pela burguesia e que só a ela beneficiaram. Curiosamente, não há, entre todas as recomendações, a expropriação das grandes fortunas, das grandes empresas ou dos grandes latifúndios, construídos sobre o monstro da escravatura e do racismo. O que há são pequenas medidas de excepção, que, como dizia Tancredi Falconeri, mudam tudo para que tudo fique na mesma.
Talvez essas sejam mesmo as principais recomendações do comité das reparações: monopolizar o debate; distrair as atenções das lutas que unem todos os trabalhadores em torno dos seus interesses de classe, agigantar o racismo e retroalimentar o Partido Democrata.