No hay nada más vivo que un recuerdo
A obra de Federico Garcia Lorca tem a força (a vida) do engenho do povo de quem herdou, e enricou, os sinais
O corpo de Federico tombou sob as balas dos milicianos franquistas, algures na estrada entre Alfacar e Víznar, às portas da sua Granada. Negaram-lhe sepultura e, por isso, em vez da lápide a que se chamasse «última morada», o que ficou para recordar foi a imagem imortal do seu rosto juvenil. Soubessem que no hay nada más vivo que un recuerdo (não há nada mais vivo do que uma recordação), como afirmou Federico, e saberiam que matar o poeta nunca é matar a sua poesia.
A obra de Federico Garcia Lorca – extensa, bela e significativa – tem a força (a vida) do engenho do povo de quem herdou, e enricou, os sinais. «No hay nada más vivo que un recuerdo» é também sentença que projetou no futuro, o aviso com que responde aos que procuram reescrever a História do seu assassinato e da ignomínia fascista nas páginas compradas da comunicação social, nas cadeiras da governação, nos papers da Academia.
Corria o ano de 1931 – o primeiro da Segunda República – quando foi chamado à inauguração da biblioteca pública de Fuente Vaqueros, a aldeia onde nasceu a 5 de Junho de 1898. Na sua alocução, anunciou um tempo de rotura com a Espanha analfabeta, de construção de uma República em que «o livro deixe de ser um objecto de cultura de uns poucos para se converter num tremendo factor social». Premonitório, ali afirmaria que «contra o livro as perseguições de nada servem. Nem os exércitos, nem o ouro, nem as chamas podem nada contra ele; porque podeis fazer desaparecer uma obra, mas não podeis cortar as cabeças que aprenderam com ela […]. E sabei, desde já, que os avanços sociais e as revoluções se fazem com livros e que os homens que os dirigem morrem tantas vezes, como o grande Lenine, de tanto estudar, de tanto querer abarcar com a sua inteligência».
As linhas com que um poeta se cose
Em 1914, muito antes daquele dia de inaugurar a casa dos livros, Garcia Lorca ingressou na Universidade de Granada – primeiro para estudar Direito, depois para cursar Filosofia e Letras. Interessava-se pela música, mas a irrequietude das viagens por Espanha, na companhia de colegas e amigos, será a matéria da sua primeira literatura, com Impresiones y paisages (2018).
Em 1919 instala-se em Madrid. No ambiente de efervescência cultural da Residência de Estudantes cruza-se com artistas como Luis Buñuel e Salvador Dalí, estreita laços de amizade com o compositor andaluz Manuel de Falla, com quem organizará a Festa do Cante Jondo, em 1922. Muita escrita feita, entretanto, publicaria Romancero Gitano em 1928, obra maior do andaluz para quem a noite, a lua, a morte e as demais paisagens da vida serão metáfora e canto popular.
Em 1929, Garcia Lorca estará em Nova Iorque, a «civilização sem raízes» que fixará em Poeta em Nova Iorque. Regressado a Espanha, criará o teatro universitário itinerante La Barraca, que levará ao palco nomes como Calderón, Cervantes ou Lope De Veja. Ali, à dramaturgia já escrita (Mariana Pineda, 1927) vão juntar-se Bodas de Sangue, Yerma e La Casa de Bernarda Alba (1936). Com o início da Guerra Civil deixa Madrid e regressa a Granada – a terra onde nasceu será o chão do seu corpo baleado.
Como bem deixou dito Urbano Tavares Rodrigues, numa publicação do Sector Intelectual do Porto do PCP, «Lorca não foi apenas o apaixonado cantor da Andaluzia, do mar e da montanha, da vega de Granada, da trágica morte de Ignácio Sanchez Mejía, dos ciganos morenos com lume nos olhos e nas navalhas, o prodigioso criador de ousadas metáforas, de uma nova linguagem poética. Ele foi o dramaturgo da vida e do sonho, da paixão e da morte em peças tão exaltantes e de tão cru e certeiro realismo, à beira da magia e do delírio, como Bodas de Sangre e a Casa de Bernarda Alba. Foi também o criador do teatro A Barraca, o revolucionário pedagogo que desejava levar ao povo uma cultura de qualidade, a mais fundamente transformadora. E que viveu esse projecto, calcorreou terras de Espanha, ao lado dos comediantes, com a poesia na sacola e a esperança nos lábios».
Sementeira, afinal. De recordações.