Calamento, de Romeu Correia
As histórias do povo são sempre histórias de exemplo, de dignidade e de trabalho
A obra ficcional de Romeu Correia (Almada, 1917/1996), tem vindo a ser publicada graças ao empenho da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, a qual, com alguns apoios pontuais, vem tentando reeditar os títulos centrais de uma obra vasta e diversificada, abrangendo géneros tão diversos como o teatro, o romance, a biografia e o conto.
A matéria ficcional do autor de Trapo Azul tem como leitmotive, com raras excepções, as histórias e as vivências das gentes que habitaram, num período temporal situado entre os anos 1940/80, a margem sul do Tejo, que aí se fixaram, criaram raízes, formas de estar diversas e peculiares, que ergueram colectividades de desporto, de música, de teatro, criando, nesses lugares (Cacilhas, Pragal, Cova da Piedade, Feijó, Sobreda, Trafaria, Costa de Caparica) da sua Almada natal, mesmo vigiados pela PIDE, dinâmicas culturais integradoras e fecundas, desenvolvendo, através desse empenho colectivo, nesse vasto território de trabalho e luta, uma identidade singular, que caracteriza «as gentes da Outra Banda».
Romeu Correia fez parte integrante, enquanto escritor e desportista, desse processo de valorização social, cívica e cultural do povo de Almada. A sua obra ficcional – e ele será o grande e lídimo cronista dos lugares e das gentes que habitaram esse espaço –, percorre os vários ofícios, desde a pesca no Tejo e os pequenos tráfegos, em Cais do Ginjal, as costureiras, em Trapo Azul, ou as suas memórias de infância, puto fascinado pelas figuras em movimento, em Bonecos de Luz, ou os homens e mulheres da pesca artesanal na Costa de Caparica, esses «filhos das ervas», em Calamento. Em todos os romances de Romeu Correia é sempre o povo miúdo, esse exército anónimo de gente ignorada pelos poderes e explorada pelos mandantes, que dizem de sua justiça, que tem voz.
Calamento, romance publicado em 1950, fala-nos dos homens e mulheres que nos anos 1940 habitavam o extenso areal que se espraia entre a Costa de Caparica e a Fonte da Telha, dedicando-se ao velho método da arte-xávega. É da miséria quase absurda dessas gentes arrumadas em casebres, vinda de outras geografias e de outros mares, uns de Ílhavo, outros do Algarve, com o mar à porta, que dele arrancam, quando os elementos e a brandura das ondas o permite, escasso sustento, que este livro, a vários títulos notável, nos fala. Das mulheres, sobretudo, nos diz este livro, pois se as havia sofredoras e resignadas, ou senhoras de sete ofícios, lobas para a ganhuça, como a fabulosa Tia Adelaide Capote, igualmente as havia atentas ao dia de amanhã, forçando o cerco da rotina económica, tratando da prole, da venda da pescaria, a pé nu, desde a Caparica, à Adiça, passando pela Sobreda e outros lugares perdidos entre montes.
Com o verão e a chegada dos veraneantes vindos da cidade grande, a malta da pesca dividia-se entre serviços de comes e bebes nas esplanadas e a faina no mar, enquanto as mulheres se atarefavam a caiar o casebre, alindando o cenário pobre, para o alugar, por uns dias, aos que de longe vinham descansar ao Sol da Caparica.
Dos amores e desamores, da fome e da sua difícil superação, do abandono e do desespero, dos sonhos iludidos nas cordas de uma guitarra, ou do desejo de Emília, lavando os filhos na celha, de um dia ter dinheiro grosso para poder viver com os filhos em casa limpa, se faz este livro agora em 4.ª edição, com uma nota introdutória de António Mota Redol.
Calamento, de Romeu Correia é um romance que ainda faz sentido, dado que as histórias do povo são sempre histórias de exemplo, de dignidade e de trabalho e o autor de Os Tanoeiros, tem a rara capacidade de prender o leitor às histórias que recolheu, em vozes carregadas de sal e desesperança, nas suas andanças pelos lugares da outra margem.
Calamento, de Romeu Correia, edição Colibri/2020