Rita Lee – a prisioneira das canções

Manuel Pires da Rocha

Rita Lee chegou a ser presa pela ditadura militar brasileira

No Brasil de 1976 – o ano em que Rita Lee foi presa – por cá cantava-se Tanto Mar, a homenagem musical-poética de Chico Buarque à Revolução de Abril. Por lá, a ditadura militar duraria ainda uma década inteira, cobrindo toda a sociedade brasileira com o seu manto de repressão. É dos livros, porém – e tal decorre da realidade que traduzem –, que a repressão fascista é incapaz de tolher a resistência e o avanço antifascistas, seja em que domínio for, e a música não é excepção.

A resistência em forma de canção contava, desde muito antes de Tanto Mar, com vozes como a de Vinícius de Moraes, o já referido Buarque, Geraldo Vandré, Nara Leão, Elis Regina e tantos mais que encontravam na canção popular brasileira a matéria-prima da tarefa lutadora. Havia, porém, quem considerasse que a reivindicação sonora de um futuro libertador precisava também das guitarras eléctricas do rock norte-americano. Para tal juntaram-se vozes em movimentos como o Tropicalismo, interessados em somar sonoridades incisivas às heranças de Bossa Nova, por incisivo ser todo o gesto de rotura. A voz de Rita Lee estaria nesse novo movimento, construindo, com Arnaldo Batista e Sérgio Dias, os Mutantes – uma fábrica de canções que usava na sua produção o kitch da cultura «brega», o rock electrificado, a cultura popular, a poesia de protesto e o que mais estivesse à mão. Na música dos Mutantes a guitarra eléctrica e o berimbau conspiravam juntos no acompanhamento da voz de Rita Lee, atirando Panis Et Circensis (de Gilberto Gil e Caetano Veloso) aos seguidores da ditadura militar, que procurava fazer eternas as desigualdades do vasto Brasil.

No Brasil de 1976, a visibilidade do palco das canções podia estar muito perto das grades da prisão. Bastou a Rita Lee ter ameaçado, ainda que levemente, o poder da polícia fascista, para que a invenção da posse de um punhado de «maconha» a tivesse atirado para os calabouços do Departamento Estadual de Investigações Criminais, um dos órgãos operacionais da ditadura. Lee viria a negar a posse do estupefaciente já que, naquele período, a alegria da gestação do seu primeiro filho a impedia do encontro com mais inebriantes alegrias. A droga teria sido «plantada» na casa da artista, prática usual daqueles acusadores, de que anos mais tarde também um cantor português viria a ser vítima em terras brasileiras.

Rita Lee seria depois encerrada no paulista Presídio do Hipódromo, hoje Memorial da Resistência por ter encarcerado, a partir de 1972, as presas políticas brasileiras. Rita seria bem recebida na ala para reclusas de delito comum, reconhecida e reempossada na função jogral pela vontade das companheiras de cativeiro – conseguiram-lhe um instrumento e tiveram o seu showzinho particular: «empunhei o violão e mandei Ovelha Negra com direito ao bis do bis. O inferno de Dante cantando em uníssono “Baby, baby, não adianta chamar” merecia um Óscar de melhor musical», diria em recordação.

Dias depois do sucesso entre as grades Rita Lee viria a sofrer complicações na gravidez, com dores fortes e hemorragia. Abandonada no esquecimento prisional, nem o «canecaço» que as companheiras de infortúnio organizaram conseguiu a chegada de ajuda médica. Valeu-lhe Elis Regina, desdenhadora da opção musical da rockeira, mas solidária com a mulher em risco (um dia decerto haverá quem estude o poder de uma cantora no amedrontar dos carrascos).

Rita Lee morreu há poucos dias. Deixa de herança, a quem possa querer, mais de duas dezenas de discos, muitas participações em televisão e cinema, um coro de milhões de vozes que sabem de cor Baila Comigo, Ovelha Negra e outras suas canções.



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