O Dia Internacional dos Museus e a memória da resistência

Os mu­seus da re­sis­tência estão em­pe­nhados na trans­for­mação do pre­sente

O pro­cesso de pa­tri­mo­ni­a­li­zação da me­mória da re­sis­tência à di­ta­dura fas­cista em Por­tugal tem uma his­tória ainda breve. Temos como re­fe­rên­cias os casos do Museu do Al­jube, em Lisboa, inau­gu­rado em 2015, e do Museu Na­ci­onal Re­sis­tência e Li­ber­dade (MNRL), em Pe­niche, com a sua (re)aber­tura mar­cada para o pró­ximo ano, coin­ci­dindo com as co­me­mo­ra­ções dos 50 anos do 25 de Abril. Estes mu­seus ins­crevem-se numa nova ti­po­logia de ins­ti­tui­ções de me­mória, que diz res­peito a «he­ranças di­fí­ceis», a pas­sados con­fli­tuais, que, muitas vezes, não estão ainda en­cer­rados.

A área da mu­se­o­logia tem co­nhe­cido uma forte evo­lução, des­na­tu­ra­li­zando-se a ideia de con­ser­vação e va­lo­ri­zando-se o sen­tido re­la­ci­onal do que se con­serva, numa re­flexão que, in­clu­si­va­mente, tem tido im­pacto nou­tros campos, como por exemplo o campo ar­tís­tico. A mu­se­a­li­zação de tes­te­mu­nhos con­fli­tuais tem me­re­cido es­tudos vá­rios, que in­ter­rogam as múl­ti­plas cir­cuns­tân­cias do que se con­si­dera pa­tri­mónio, do que se re­pre­senta, face a que olhares, dis­cu­tindo-se tanto a re­lação entre essa re­pre­sen­tação e as co­mu­ni­dades que con­ferem sig­ni­fi­cados às peças e aos es­paços, como o papel do museu no seu pró­prio tempo en­quanto ins­tru­mento cul­tural, ci­en­tí­fico, pe­da­gó­gico e também cí­vico.

Através destas ins­ti­tui­ções de me­mória po­demos pensar a re­lação das so­ci­e­dades ac­tuais, em cada con­texto, com a sua his­tória re­cente, e em que me­dida são si­mul­ta­ne­a­mente pro­duto de uma tensão, de um con­flito so­cial e po­lí­tico, e es­paço de en­contro, mu­tu­a­mente in­flu­ente, com di­men­sões fre­quen­te­mente ig­no­radas das re­la­ções in­te­rac­tivas entre su­jeitos e co­mu­ni­dades com re­la­ções de poder as­si­mé­tricas. É de um es­grimir de forças opostas que fa­lamos quando olhamos o pro­cesso de pa­tri­mo­ni­a­li­zação de me­mó­rias con­fli­tuais, ou de ex­pe­ri­ên­cias vi­o­lentas. A vi­si­bi­li­dade das me­mó­rias – se são fortes ou fracas – de­pende de quem as produz, os ven­ce­dores ou os ven­cidos, que fa­bricam os seus re­latos do acon­te­cido, uns sendo cris­ta­li­zados e os ou­tros ten­den­ci­al­mente si­len­ci­ados.

Em Por­tugal, pensar os pro­cessos de pa­tri­mo­ni­a­li­zação da re­sis­tência no sé­culo XX pres­supõe in­ter­rogar os me­ca­nismos de ma­nu­tenção da me­mória co­lec­tiva e de dis­puta de uma me­mória pú­blica. Uma vez que o de­sen­vol­vi­mento de uma iden­ti­dade es­pe­cí­fica no seio da­quilo que se en­tende como me­mória co­lec­tiva se ba­seia em per­cep­ções par­ti­lhadas do pas­sado que são so­ci­al­mente cons­truídas no pre­sente, in­ter­li­gando uma co­mu­ni­dade através de eventos co­me­mo­ra­tivos e ou­tras marcas na pai­sagem, como mo­nu­mentos, to­po­nímia e me­mo­riais, a iden­ti­dade vai dessa forma ca­rac­te­rizar um co­lec­tivo e dar-lhe uma per­cepção par­ti­lhada que o dis­tingue de um outro. O facto de exis­tirem me­mó­rias em con­flito re­sulta na cri­ação de iden­ti­dades não ho­mo­gé­neas e de ten­sões no seio das so­ci­e­dades do pre­sente. Dito de outra forma, estes mu­seus da re­sis­tência que re­fe­rimos não são de todos. Ainda há aqueles que, no pre­sente, não se re­vêem nas me­mó­rias dos re­sis­tentes.

Mas a me­mória pode ser mo­bi­li­zada como ins­tru­mento para a de­fesa dos di­reitos hu­manos e de prin­cí­pios uni­ver­sais de jus­tiça, res­ga­tando nar­ra­tivas da his­tória al­ter­na­tivas ou até agora si­len­ci­adas, e ga­nhando para o «nós» muitos que não se te­nham po­si­ci­o­nado ainda, no pre­sente, em re­lação ao pas­sado. O pa­tri­mónio en­quanto ma­te­ri­a­li­zação da me­mória deve ser, desta forma, ob­ser­vado como um es­paço ético capaz, não so­mente de afirmar certas iden­ti­dades, mas de propor re­fle­xões hu­ma­nistas e uni­ver­sa­listas sobre temas como a re­lação entre o pas­sado, o pre­sente e o fu­turo, a na­tu­reza do pró­prio pa­tri­mónio, a na­tu­reza de­si­gual de re­la­ções de poder, a in­vi­si­bi­li­dade no es­paço pú­blico de grupos mi­no­ri­tá­rios ou his­to­ri­ca­mente opri­midos.

São mu­seus em­pe­nhados na trans­for­mação do pre­sente. Como re­fere o ca­tá­logo do Museu do Al­jube, este pre­tende-se um es­paço de­di­cado «à me­mória do com­bate à di­ta­dura e da re­sis­tência», através da va­lo­ri­zação das «me­mó­rias co­muns», dando a co­nhecer «o si­lêncio a que todo um povo foi mer­gu­lhado, res­ga­tando-o para en­si­na­mentos dos mais novos».

 



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