Iniciativa do PCP no Parlamento Europeu defende crianças e pais com direitos
Foi apresentada no Parlamento Europeu uma proposta da deputada comunista Sandra Pereira, que deverá culminar na elaboração de um relatório, traçando linhas para «reduzir as desigualdades e promover a inclusão social em tempos de crise para crianças e suas famílias».
Os investimentos públicos devem reflectir-se na melhoria da vida das crianças
«Reforçar as políticas estruturais e os apoios sociais às crianças e às famílias» é um objectivo para o qual as autoridades orçamentais da UE deverão «reforçar e fazer uma melhor utilização das dotações» dos fundos (FSE+, FEDER e FEAD) e da iniciativa «Garantia para a Infância». Isto deve suceder já na próxima revisão intercalar do QFP 2021-2027 (quadro financeiro plurianual), anunciada pela Comissão Europeia para o presente trimestre.
Esta é uma das 16 propostas que constam no texto entregue, no início desta semana, na Comissão do Emprego e Assuntos Sociais do Parlamento Europeu, pela deputada do PCP.
No mesmo sentido vai a primeira recomendação que o PE é chamado a aprovar. Exorta os Estados-Membros «a reforçarem o investimento público em políticas de carácter universal que impactem, directa e indirectamente, na vida das crianças». Trata-se de garantir «serviços públicos de elevada qualidade (particularmente assistência, educação, saúde, habitação e actividades de cultura e lazer)».
Os Estados-Membros deverão promover «a criação de trabalho com direitos, assentes em sistemas sólidos de contratação e negociação colectivas, e com salários dignos e justos», bem como condições laborais «que facilitem a conciliação entre a vida profissional e a vida familiar».
Para este fim, propõe-se, nomeadamente, a redução do horário de trabalho e o uso de licenças de maternidade e paternidade, bem como o reforço dos «mecanismos de participação das crianças e respectivas famílias no desenvolvimento, na aplicação e no acompanhamento destas políticas».
Aos Estados-Membros, apela-se a que «apliquem legislações que protejam ou aumentem os direitos de maternidade, paternidade e parentalidade, permitindo uma conciliação entre a vida laboral e a vida familiar mais eficaz, que salvaguardem o regresso ao trabalho das mulheres, após a gravidez e a licença de maternidade, e que permitam a amamentação».
A Comissão Europeia deve «abster-se» de «recomendar reformas, cortes e enfraquecimento na Administração Pública dos Estados-Membros» e de «promover a flexibilização das relações de trabalho e a privatização de serviços públicos».
«A todas as crianças» deverá ser garantido «o acesso à educação, formal e não formal, pública, gratuita, inclusiva e de qualidade, em todas as idades». Devem igualmente ser assegurados «cuidados de saúde universais, públicos, gratuitos e de qualidade, a todas as crianças e respectivas famílias», com destaque para «a valorização da vacinação das crianças e a necessidade de combate a focos de desinformação sobre os seus benefícios».
Os Estados-Membros deverão promover «uma política pública de habitação que combata a especulação e assegure» o direito a «uma habitação confortável, que satisfaça as necessidades das crianças e das suas famílias» e garanta «bem-estar, privacidade e qualidade de vida».
Devem ser dinamizados, em cada país, «programas de controlo dos preços de energia, transportes e outros bens de primeira necessidade, de forma a reduzir os impactos do aumento do custo de vida junto das crianças e das suas famílias».
A deputada do PCP, Sandra Pereira, propõe que o Parlamento Europeu condene «todas as formas de violência, abusos, exploração e negligência sobre as crianças» e exorte os Estados-Membros «a desenvolverem e aplicarem sistemas integrados de prevenção e protecção de crianças, com vista a erradicar a violência».
Deve ser reconhecida «a necessidade de investimento em meios de apoio e acompanhamento às crianças e jovens requerentes de asilo, às famílias e instituições de acolhimento».
A raiz está nas famílias
Na base da proposta (cuja apresentação no PE foi precedida de um trabalho preparatório, em que se integrou a audição realizada em Lisboa, a 21 de Abril), está o conceito de que «a pobreza infantil é um fenómeno multidimensional, que advém da pobreza das famílias».
Por este motivo, «as famílias de baixos rendimentos, as famílias monoparentais (constituídas maioritariamente por mulheres e seus filhos) e as famílias numerosas correm maior risco de pobreza».
É necessária «uma resposta multidimensional, que passa necessariamente pelo aumento do emprego e da segurança no emprego, pela garantia e efectivação de direitos, pela valorização dos rendimentos associados e pela universalidade do acesso a serviços públicos de qualidade».
Na «exposição de motivos», que integra a proposta do PCP, esta ideia é retomada e desenvolvida, afirmando-se que:
– «Para que as crianças tenham direitos, os pais têm de ter direitos»;
– «Acompanhar o crescimento dos filhos não é só direito dos pais, é direito das crianças»;
– «Não é possível falar dos direitos das crianças sem falar dos salários, dos horários e da estabilidade do emprego dos pais, nomeadamente, contribuindo para o fim da precariedade laboral, da desregulação dos horários de trabalho, do trabalho mal pago, dos baixos salários, das discriminações salariais, bem como dos elevados custos com habitação, transportes, creches, de despesas com a educação ou a saúde».
Pelo desenvolvimento integral
Para «assegurar um futuro mais justo, igualitário e desenvolvido», é «indispensável» que haja «o desenvolvimento integral das crianças, garantindo que crescem saudáveis, curiosas, interventivas, com respeito pelo mundo que as rodeia».
Para garantir este desenvolvimento integral, cabe aos Estados-Membros «a formulação de políticas universais e estruturais. A União Europeia pode e deve «contribuir, nomeadamente através da redistribuição de fundos que promovam a coesão territorial e social» e definindo «programas específicos» para «respostas sociais abrangentes».
São defendidas pelo PCP linhas políticas que:
– «reforcem o investimento em serviços universais, públicos e de qualidade de educação, saúde e Segurança Social»;
– «dinamizem a prática desportiva e a educação física, o usufruto do ar livre, o acesso à cultura»;
– «promovam a participação das crianças, e mecanismos de cidadania infantil e juvenil»;
– «garantam respostas adequadas contra a violência»;
– «assegurem habitação confortável»;
– «contribuam para um ambiente sustentável»;
– centradas «no direito inalienável de deixar que as crianças brinquem».
Assinala-se que «os primeiros anos de vida têm um impacto decisivo no desenvolvimento integral das crianças», para sublinhar que «é essencial assegurar creches gratuitas, alicerçadas numa rede pública, para todas as crianças menores que três anos, acabando com a discriminação da dificuldade de acesso que empurra muitas famílias para soluções precárias».
Da mesma forma, «é essencial o acesso gratuito ao pré-escolar para todas as crianças a partir dos três anos».
Defende-se que «os sistemas educativos, em todos os seus níveis, devem promover uma cultura universal e focada no desenvolvimento integral dos indivíduos».
Uma opção a apoiar
A opção de ter filhos «cumpre uma função social» e «a sociedade deve apoiar» quem a toma.
Defender os direitos dos pais e das crianças «exige combater o incumprimento dos direitos de maternidade e paternidade». Estes direitos devem ser garantidos «na gravidez e no puerpério, na amamentação, quando estão doentes ou em qualquer outra situação justificável».
Contudo, observa-se na «exposição de motivos», «a legislação existente nos Estados-Membros está muito longe de ser exercida na vida, desde logo a partir das empresas e locais de trabalho».
O PCP defende que é urgente cumprir e alargar esses direitos, garantindo, nomeadamente, licenças de maternidade e paternidade pagas a 100 por cento, pelo menos nos primeiros seis meses de vida dos bebés».
O objectivo da UE
O Plano de Acção do «Pilar Europeu dos Direitos Sociais» (2021) afirma o objectivo de, até 2030, reduzir em, pelo menos, cinco milhões, o número de crianças em risco de pobreza e exclusão social. Ora, alcançar tal objectivo significaria que permaneceriam cerca de 15 milhões de crianças em risco de pobreza e exclusão social.
Testemunhos
Mais de uma dezena de participantes usaram da palavra na apresentação da iniciativa da deputada do PCP, a 21 de Abril. Como foi salientado por Sandra Pereira e também por Margarida Botelho, do Secretariado do Comité Central do PCP, ali falaram aqueles que, como dirigentes de organizações ou como profissionais, contribuem todos os dias para o desenvolvimento das crianças». Deixamos algumas das suas frases.
Inês Torrado, pediatra no Hospital de Chaves: «É necessário repensar os espaços e os tempos da infância, para melhor os adaptar às necessidades dos bebés e dos pais, sobretudo nos primeiros anos de vida.»
Jorge Ascensão, representante da Confap: «Temos de procurar conseguir políticas, no âmbito da educação e do trabalho, que permitam às famílias ser de facto legítimos representantes da comunidade escolar na organização, no funcionamento e nos objectivos da escola.»
Gabriela Trevisan, do laboratório colaborativo ProChild CoLAB: «Há coisas muito interessantes a acontecer nas escolas que garantem o direito a brincar, a aprender coisas de um modo diferente.»
Mafalda Lourenço, da Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso: «Uma criança não pode estar seis meses à espera de uma consulta de Oftalmologia ou de Otorrino.»
Deolinda Machado, do Movimento Erradicar a Pobreza: «Numa sessão, na minha escola, o saudoso Bispo de Setúbal, Manuel Martins, confrontado com a afirmação de que "pobres sempre os tereis entre vós", na Bíblia, respondeu “não diz é que têm de ser sempre os mesmos”.»
Manuel Melo Gomes, presidente do Centro de Promoção Juvenil (Casa da Estrela) e vice-presidente da UDIPSS: «Foi aprovada em 2019 uma proposta, para alteração da lei de promoção e protecção de jovens em risco. Ainda está por regulamentar. É inaceitável.»
Anabela Laranjeira, representante do Movimento Democrático de Mulheres: «Há amplo consenso na legislação e no discurso, mas é muito importante olhar para o dia-a-dia. As coisas não vão bem.»
Fátima Messias, dirigente da CGTP-IN e da sua Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens: «Em última análise, estamos a falar do tipo de sociedade que queremos. Quando uma criança é pobre, já os pais têm fome há muito tempo.»
Maria da Luz Nogueira, vereadora (em substituição) da CM de Odivelas, com funções não executivas: «É dos concelhos onde tem havido maior taxa de natalidade. A rede social, para creches, não chega a 600 vagas. É uma grande lacuna na resposta às famílias.»
Dulce Neves, em representação do Nascer.pt (laboratório de estudos sociais do ISCTE): «As condições do nascimento são atravessadas por dinâmicas de desigualdade social, que têm relevância logo na decisão de ter ou não ter filhos. Hoje, a população mais fecunda tem recursos e escolaridade.»
Anabela Raposo, educadora de infância, coordenadora de uma escola de 1.º Ciclo: «O projecto "Escola a Tempo Inteiro" é só um depósito, é o tempo inteiro na escola. Onde estão as ofertas, os recursos? Depois, os miúdos fogem das actividades, vão para o recreio e dizem-me "deixe-me ficar aqui".»