Em Abril, com um cheirinho de alecrim

Nuno Gomes dos Santos

Tanto Mar é uma homenagem à conquista da liberdade em Portugal

Primeiro aconteceu com Bob Dylan e depois foi com Chico Buarque: cantautores são distinguidos com importantes prémios literários, o Nobel para o criador de The Times They Are A-changin’, o Prémio Camões para o autor e interprete de Tanto Mar, genial criador de cantigas e também prosador conceituado, que conhecemos há muito, ainda ele «andava à toa na vida a ver a banda passar» e nós a começar a espantar-nos com o que este homem fazia, mal sabendo ainda que estávamos perante alguém que viria a ser nosso companheiro de muitas viagens com música por fundo servida por palavras certeiras e amigas.

Chico recebeu o prémio, o mais importante prémio literário em língua portuguesa, no dia 24 de Abril de 2023, mas teve de esperar quatro anos para que o galardão lhe chegasse às mãos. Ele escolhera o dia 25 de Abril de 2020 para a cerimónia de entrega e recebimento, dado gostar particularmente dessa data e do que nela se comemora no nosso país, mas veio a COVID e estragou tudo. E, como se não bastasse a pandemia para atrasar a festa, veio Bolsonaro meter-se ao barulho, dizendo que não era uma prioridade sua assinar o diploma de atribuição do prémio – que requer as assinaturas dos presidentes do Brasil e de Portugal – e, pensando que ganharia direito a um segundo mandato, ideia que o povo brasileiro soube derrotar, gozou connosco ao afirmar que «até 31 de Dezembro de 2026 eu assino». Chico respondeu à letra: «a não assinatura de Bolsonaro no diploma é, para mim, um segundo prémio Camões.» Ao ditador brasileiro saiu-lhe o tiro pela culatra e, postos os pontos no ii e Lula no posto que o ex-presidente (de má memória…) então ocupava, por cá esteve Lula da Silva, chegando de pena em riste para a assinatura ao lado de um Marcelo Rebelo de Sousa desembaraçado em oficializar, com a sua rubrica, a entrega do prémio.

Nós aplaudimos a vinda a Portugal deste Chico Buarque que nos presenteou com inúmeras cantigas que sabemos de cor e nos enriqueceram. Tanto Mar, que já foi referida, é uma homenagem à vitória da Liberdade que o poeta, compositor e intérprete nos presta, pedindo que chegasse ao seu país o nosso «cheirinho a alecrim». E depois temos Cálice, Construção, Apesar de Você («apesar de você / amanhã há-de ser /outro dia»), O que será e muitas outras canções, distribuídas por cerca de 80 discos.

Na ficção recebeu distinções pelas suas obras Estorvo, Budapeste e Leite Derramado e foi autor de peças de Teatro como Gota de Água e Ópera do Malandro, tendo musicado, por exemplo, o auto Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.

Chama-se, de facto, Francisco Buarque de Holanda, filho do jornalista, escritor e académico Sérgio Buarque de Holanda. Conhecemo-lo dos discos, da rádio, da televisão e também, mas menos, das suas obras de ficção. Veio várias vezes a Portugal. Numa delas para participar na Festa do Avante! de 1980, na qual actuou num show com Edu Lobo, os MPB4 e Simone. Foi o seu primeiro concerto em Portugal depois do 25 de Abril e Chico veio de borla. Rúben de Carvalho, director da parte artística da Festa, disse que «estava um bocado assustado com o que aquilo ia custar, mas o Chico não levou nada».

Foi um espectáculo de ir, literalmente, às lágrimas e, segundo os jornais da época, a maior plateia que Chico Buarque jamais teve. Merecida. Tanto quanto o Prémio Camões que, finalmente, lhe foi entregue.

No fim de tudo isto apetece mandar um recado a Bolsonaro: foi bonita a festa, pá, apesar de você!




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