Um grito de alerta e saturação

Rui Fernandes

A atitude assumida pelos militares do navio Mondego foi uma chamada de atenção de que as coisas assim não podem continuar

O lobo será sempre mau se ouvires sempre
a versão do Capuchinho Vermelho

Anónimo

Só quem anda muito distraído sobre a realidade ou gosta de «canções de embalar» pode ficar surpreendido com o acto protagonizado por 13 militares do navio Mondego. Foi ali, naquela circunstância, mas poderia ter sido numa qualquer outra em terra ou no mar, na Marinha ou em qualquer outro ramo das Forças Armadas. Anos de sucessivos reparos sobre o estado das Forças Armadas foram olímpicamente ignorados por sucessivos governos e, com raríssimas excepções, por chefes militares.

A sobrecarga navegante que de há muito se abate sobre militares da Marinha, a degradação das condições sócioprofissionais, a degradação do estado dos meios, inevitavelmente teriam de ter repercussões no estado de espírito de quem, lidando com o que lida e tendo à sua responsabilidade o que tem, deveria ver serem proporcionadas as condições para concentradamente executar as tarefas que lhe estão atribuídas. Ora, de há muito que «os ponteiros do relógio» giram ao contrário. Acresce que, salvo melhor opinião, à luz das alterações da estrutura superior e da missão que o navio ia executar, a dependência operacional é do Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) e não do Chefe de Estado Maior da Armada (CEMA).

Ouvir dizer que «aquilo que importa é a disciplina» é dramático. E fique claro que não se está a dizer que a atitude não é uma infracção disciplinar ou a defender que não haja princípios de comando. Mas pretender ignorar a circunstância, pretender que um militar exerça a sua missão, incluindo aquela que é a sua tarefa concreta e pela qual terá de responder se algo correr mal, afectando também desse modo a sua avaliação profissional, sem lhe proporcionar as condições para isso, saltar por cima disso tudo, relevando a atitude indisciplinada do militar, é desastroso. Desde logo porque tem sido também à conta desse princípio de que o militar «come e cala» que chegámos ao estado a que chegámos. Depois, porque indicia que dando uma «porrada» nestes militares a coisa fica resolvida, a disciplina imperou e pode tudo continuar a correr o curso normal, ou seja, o rame-rame dos discursos de circunstância, dos «presta contas» que escondem a realidade, das fotos e reportagens para mostrar aparências e bater com a mão no peito: temos muito prestigio internacional. Ponto final.

Aliás, há uma «porrada» que já foi dada através do enxovalho público. É isto que está consagrado nos regulamentos militares? Ninguém superior ao Almirante CEMA não tem nada a dizer?

Quando se fala tanto de atractividade (ou falta dela) é bom ter a consciência de que os jovens sabem mais da realidade existente do que aquilo que parece e desde logo sabem que são mal pagos. E se é certo, como diz a ministra da Defesa, que há os valores, a camaradagem, etc., aspectos que valorizamos, é certo também que tudo isso não paga as contas ao fim do mês. E se a isso se somar o estar, nalgumas categorias, 20 anos no mesmo posto, um sistema de avaliação que promove a injustiça, etc., o resultado só pode ser: muito obrigado, mas dispenso.

A atitude assumida por estes militares, mais do que um acto de revolta ou insubordinação, foi um grito de alerta e de saturação, foi uma chamada de atenção de que as coisas assim não podem continuar. É sobre isto que importaria que o Governo e as chefias incidissem o seu olhar e reflexão. É fantástico e revelador que dois dias depois da mediatização do caso, tenha saído um despacho a autorizar despesas – 13 milhões para o ano de 2023 – à Marinha para contratação de serviços de manutenção. Ignora-se quanto custará reparar o conjunto de problemas que vieram a público no navio Mondego (sendo que o Mondego não está contemplado nessa distribuição de verbas), mas arriscamos a dizer que não sobrará muito e que a resposta necessária a dar a outros navios ficará em lista de espera.

O acumular sucessivo de problemas requer depois muito mais investimento. A folha de Excel não permite. Dirão que as Forças Armadas não são uma ilha isolada do País. É o que têm dito para os militares, para a saúde, para os professores, para as forças de segurança, para a justiça, para o desenvolvimento da indústria, da agricultura ou das pescas. O problema é mesmo outro.




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