Preços da alimentação e da energia: aproveitamentos e faz-de-contas

Duarte Alves

A criação da tarifa regulada do gás mostra que o controlo de preços funciona

Os preços dos produtos essenciais não param de subir. Os salários e pensões não acompanham nem o aumento de preços (com uma inflação em 2022 de 7,8%, mas em que muitos bens essenciais superaram os 30% de aumento), nem o aumento da produtividade do trabalho (que em 2022, aumentou 4,5%), traduzindo-se na maior transferência, num só ano, de rendimentos do trabalho para o capital deste séculoi.

A acção de fiscalização de preços realizada recentemente pela ASAE mostrou que existem produtos em que as cadeias de supermercados obtêm margens de lucro superiores a 50%. São, em muitos casos, os mesmos produtos em que se registaram aumentos de preços de 20 a 30%, o que significa que esse aumento não foi nem para os produtores, nem para os salários dos trabalhadores do comércio, nem sequer para custos adicionais resultantes da situação económica internacional. Pelo contrário, esses aumentos de preços vieram engordar os lucros da Sonae (em 2022, mais 30% que em 2021), Jerónimo Martins (em 2022, mais 40% que em 2021) e outrasii.

O que a ASAE agora «descobriu» já a maioria da população tinha percebido. A guerra e as sanções, tendo consequências reais nos preços, estão a ser usadas como pretexto para uma espiral inflacionista (a partir dos lucros, e não dos salários, como dizia António Costa) que é fruto do aproveitamento especulativo deste contexto.

Não foi por falta de alerta ou de propostas que o Governo não acordou mais cedo (se é que acordou agora) para o problema dos preços dos bens alimentares. O PCP propôs o controlo de preços num conjunto de bens essenciais, para evitar a formação de lucros extraordinários à custa dos consumidores, mas o PS, assim como PSD, IL e CH, rejeitaram essa proposta.

Mais do que acções de fiscalização, é mesmo preciso aumentar salários, controlar preços e parar a especulação. Num momento em que o tema volta à ordem do dia, o debate é contaminado pela declaração contundente de alguns comentadores de serviço, que sentenciam que «o controlo de preços não funciona». É caso para dizer que é o «mercado de livre concorrência» que está a funcionar (e bem!) para aquilo que serve: gerar o domínio monopolista de dois ou três grupos económicos, que depois controlam os preços ao sabor dos seus lucros. Mas se querem um exemplo de como o controlo de preços pode funcionar a favor dos consumidores, veja-se como a criação da tarifa regulada do gás natural (há muito defendida pelo PCP) levou a que dezenas de milhares de portugueses passassem para esta tarifa, pagando muito menos do que no «mercado livre» – afinal o controlo de preços pode ou não funcionar?

No caso da energia, assistimos a um autêntico faz-de-contas. Depois de rejeitar propostas do PCP para a criação de preços de referência e controlo de margens, o Governo apresentou (e foi aprovada) uma lei que permite ao Governo intervir sobre as margens, mas (há sempre um mas) apenas sob proposta da ERSE.

Ora, sempre que é confrontado com a não actuação, apesar de ter esse instrumento legal, o Governo escuda-se na falta de propostas da ERSE para intervir sobre as margens. Que a ERSE não veja aquilo que está à vista de todos (por exemplo, a margem de refinação média da Galp passou de 3,3 dólares por barril em 2021 para 11,6 dólares por barril em 2023iii) já é grave. Que o Governo se escude nisso para continuar a permitir os desmandos das petrolíferas e energéticas, é assumir que a lei que propôs não passou de um faz-de-contas.

iFontes: Instituto Nacional de Estatística (inflação); Conselho de Finanças Públicas (produtividade aparente do trabalho). A partir de artigos publicados por Paulo Coimbra e João Rodrigues em ladroesdebicicletas.blogspot.com.

iiDados relativos aos primeiros 9 meses do ano de 2022, os últimos disponíveis à data de elaboração deste artigo. Em breve serão publicados os lucros totais do ano de 2022.

iiiFonte: Galp, Relatório e Contas 4.º Trimestre 2022, 13/02/2023.

 



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