É preciso, é urgente, uma política (cultural) diferente

Manuel Pires da Rocha

Não existe um mapa cul­tural que acres­cente pai­sagem mu­sical à do­mi­nante di­ta­dura do gosto das in­dús­trias do en­tre­te­ni­mento

Há nomes por­tu­gueses nas fo­lhas-de-sala dos lu­gares de con­certos mu­si­cais por essa Eu­ropa fora. Nomes de jo­vens mú­sicos que fazem parte de uma re­a­li­dade mu­sical cons­truída a partir do final da dé­cada de 1980. Longe vai o tempo em que o en­sino mu­sical se aper­tava numa rede pú­blica de dois Con­ser­va­tó­rios – em Lisboa e no Porto – mal com­ple­men­tada por uma mão-vazia de es­colas pri­vadas, postas onde hou­vesse pa­gantes.

Longe dali, as so­ci­e­dades e bandas fi­lar­mó­nicas do mo­vi­mento as­so­ci­a­tivo afir­mavam a sua na­tu­reza de «Con­ser­va­tó­rios do povo», pro­por­ci­o­nando, de Norte a Sul e nas ilhas por­tu­guesas do Atlân­tico, o acesso de mi­lhares de jo­vens à apren­di­zagem da mú­sica e à prá­tica mu­sical. Mú­sica ins­ti­tu­ci­onal foi, du­rante muito tempo, as or­ques­tras Gul­ben­kian, a do S. Carlos e a da Emis­sora Na­ci­onal. No resto do País havia o que hou­vesse, que as mãos dis­po­ní­veis eram poucas e raros os ou­vidos atentos.

No início da dé­cada de 1980, ex­pandiu-se a rede de en­sino pú­blico mu­sical a um con­junto li­mi­tado de ca­pi­tais de dis­trito (Aveiro, Coimbra e Braga), mas o maior im­pulso na apren­di­zagem mu­sical seria ope­rada pela acção do mú­sico e pen­sador co­mu­nista José Luís Borges Co­elho, que de­sem­pe­nhava, nos fi­nais da­quela dé­cada, fun­ções no GETAP, um or­ga­nismo no Mi­nis­tério da Edu­cação que se ocu­pava da área da edu­cação ar­tís­tica. No Por­tugal recém-en­trado na CEE es­cor­riam as verbas que se dis­sol­viam nos bolsos dos an­ga­ri­a­dores de fundos, os mesmos que foram eli­mi­nando o te­cido pro­du­tivo na­ci­onal. Mas Borges Co­elho, vendo longe na pai­sagem pin­tada para que se visse curto, es­ti­mulou o lan­ça­mento de es­colas pro­fis­si­o­nais de mú­sica, que vi­riam a vingar so­bre­tudo no Norte do país. Este lan­ça­mento viria a coin­cidir com a che­gada, a Por­tugal, de mú­sicos do cha­mado «Leste eu­ropeu», so­brantes nos países que, no recuo para o ca­pi­ta­lismo, pres­cin­diram dos tra­ba­lha­dores ar­tís­ticos das ins­ti­tui­ções de cul­tura que eram um traço es­sen­cial das so­ci­e­dades so­ci­a­listas eu­ro­peias.

A con­junção de todas as peças do en­sino mu­sical de nível bá­sico e se­cun­dário viria a «em­purrar» as ins­ti­tui­ções de En­sino Su­pe­rior Po­li­téc­nico e Uni­ver­si­tário para a aber­tura de con­textos de for­mação su­pe­rior de ins­tru­men­tistas, hoje res­pon­sável pela co­lo­cação no mer­cado tra­balho de de­zenas de jo­vens mú­sicos «clás­sicos». Esta será a boa no­tícia. A má no­tícia é a da cons­ta­tação de que Por­tugal, isto é, as po­lí­ticas de con­fi­na­mento da cul­tura, não en­contra des­tino para tantos mú­sicos. A si­tu­ação de de­sem­prego de tantos braços não se deve a ra­zões de sa­tu­ração do «mer­cado» – deve-se à ine­xis­tência de um mapa cul­tural que possa acres­centar pai­sagem mu­sical e es­té­tica à do­mi­nante di­ta­dura do gosto das in­dús­trias do en­tre­te­ni­mento.

Como bem foi afir­mado na tri­buna do 2.º En­contro Na­ci­onal do PCP sobre Cul­tura, «o País tem vi­vido, na Cul­tura, um pe­ríodo mar­cado por uma acen­tuada eli­ti­zação, pri­va­ti­zação e mer­can­ti­li­zação, em que a Cul­tura é con­ce­bida como apenas mais uma área da ac­ti­vi­dade eco­nó­mica, cen­trada em torno das cha­madas in­dús­trias cul­tu­rais. Uma si­tu­ação e uma opção que se acen­tuou com a subs­ti­tuição da pre­sença livre e in­de­pen­dente da cri­ação pela cres­cente pre­sença e res­posta de uma mo­no­cul­tura do­mi­nante, com uma sis­te­má­tica fra­gi­li­zação do te­cido cul­tural no País, um te­cido cada vez mais vul­ne­rável e pre­cário, com novas li­mi­ta­ções no acesso à cri­ação e à fruição cul­tu­raisi».

É num tal pa­no­rama que se as­siste ao cres­cente di­vórcio entre o po­ten­cial cul­tural do País e a re­a­li­dade vi­gente: mú­sicos ca­pa­ci­tados para o en­vol­vi­mento em pro­jectos de grande al­cance cul­tural – de que o país tanto ne­ces­sita – são su­ba­pro­vei­tados na con­dição de play­back hu­mano de fútil can­ço­neta para top de au­di­ên­cias. A si­tu­ação exige a adoção ur­gente das pro­postas do PCP para a «cons­trução de um efec­tivo Ser­viço Pú­blico de Cul­tura, ele­mento cen­tral de res­pon­sa­bi­li­zação pú­blica pelo de­sen­vol­vi­mento, de­mo­cra­ti­zação e li­ber­dade cul­tural, [em que os mú­sicos en­con­trem] se­guras con­di­ções de es­ta­bi­li­dade e de de­sen­vol­vi­mento do seu tra­balho [no sen­tido in­verso ao] da Cul­tura mer­can­ti­li­zada, que co­loca os cri­a­dores ao ser­viço da en­co­menda, da es­tra­tégia de mer­cado ou mais pro­sai­ca­mente do vo­lume de vendasii».

Há muita luta para fazer.

iEx­certo da in­ter­venção de Jorge Pires no 2.º En­contro Na­ci­onal do PCP sobre Cul­tura

ii­A­dap­tado da Re­so­lução do 2.º En­contro Na­ci­onal do PCP sobre Cul­tura

 



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