Canta, camarada, canta

Manuel Pires da Rocha

A canção de protesto passava «de mão em mão»

Num recente tempo português – parece mentira – a cultura popular era matéria subversiva. Desafiando a realidade, menosprezando a capacidade da cultura enquanto lugar de afirmação e resistência, o fascismo português encarregou a FNAT da tarefa de invenção de uma cultura popular oficial, inspirada na OND do fascismo italiano, fornecedora dos códigos por que deveria orientar-se o gosto popular e respectivas manifestações artísticas. E definiu os objectivos da «alta cultura», administrada por dedicada instituição, guardadora provável da aberrante fita métrica de culturas.

Ao mesmo tempo, complementando o enquadramento institucional e os normativos, o regime fascista assegurou-se de que a Comissão de Censura se ocupava do dia-a-dia repressivo nos domínios da cultura – a purga empurrava para fora das publicações artigos, poemas, guiões, textos dramatúrgicos, crónicas, imagens, entrevistas. Apesar do cuidado extremoso da Censura, intelectuais como Mário Castrim fizeram-se mestres da escrita conspirativa, elegante e incisiva, veículo da cultura alta que o rasteiro lápis azul nem sempre detectava.

O organismo repressor viria a adoptar, com Marcelo Caetano, a mais urbana designação de Exame Prévio, mas em nada se alterou o procedimento – nem sequer na cor do lápis.

Protestar cantando

Arredia ao poder da Censura, capaz de passar de mão em mão, a canção de protesto era objecto que a malha repressiva tinha muita dificuldade em encarcerar. A canção de protesto procurava sempre seguir, sob a forma de intangível som, o exemplo maior do Avante! clandestino – ágil no passar de mão em mão, precioso na denúncia da barbárie, insubstituível na divulgação da luta. No cantar também havia sempre o exemplar que escapava ao confisco, o ouvido receptivo que captava a toada – e que adiante a deixava, para que alguém a retomasse.

A canção de protesto de que iremos falar é herdeira do canto dos jograis, por igual porta-vozes do seu povo na antiquíssima luta contra a exploração. O fascismo inventaria, por sua vez, a cançoneta situacionista impregnada de amores-a-fingir e trivialidades pseudo-inocentes, que era exibida na velha telefonia, na TV entretanto surgida, e nos demais palcos de exibição de «variedades». Arredada, por óbvias razões, daqueles lugares de apresentação, a canção de protesto ocupou o palco curto da colectividade de cultura e recreio, as cantinas universitárias, a taberna e a casa de fado em final de noite. Resistiu, nas comunidades rurais, à ofensiva da Política do Espírito do SNI, em cantos que Michel Giacometti registou e difundiu.

Desafiou as concepções de «alta cultura» juntando poema e música na celebração do heroísmo sem panteão. Cerrou fileiras no movimento conspirativo de cineclubes, universidades populares, boletins literários, colecções «cosmos» – valiosos pontos de encontro dos democratas e do alastramento da luta antifascista.

Canções que são História

A situação era recorrente: o público da canção de protesto pedia ao cantor que cantasse uma canção censurada. A PIDE estava sempre na sala, evidente ou encapotada. Dizia então o cantor, de guitarra sobre a perna: «essa não a poderei cantar. Estará aqui quem sabe que eu não a poderei cantar, pronto para a denúncia do incumprimento. Mas vocês podem cantá-la, e os proibidores nada disseram acerca de impedimentos de eu tocar esta guitarra…». Era assim que às vezes acontecia – o público no centro da acção cultural na materialização da acção democrática. Melhor ainda se o protesto cantado reafirmasse que «não há machado que corte / a raiz ao pensamento».

Justo seria dizer os nomes de quem, assim acompanhando o cantar dos presentes, munia de canções a vitalidade daquela luta difícil. Foram muitos – músicos, poetas, cantores –, e muitos deles viriam a conhecer o privilégio maior de um autor: o da apropriação da obra pelo canto colectivo. Por isso é que versos como «eles não sabem que o sonho...», «este parte, aquele parte», «vemos, ouvimos e lemos», «eles comem tudo», «avante, camarada», «Grândola, vila morena» e tantos mais, são a História quando se põe a cantar. Naquele Abril, e hoje também.




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