Nascidos em meados do século XX, de Sérgio de Sousa

Domingos Lobo

Estórias, diz-nos o autor, que dariam romances não fora o tempo escasso e as tarefas muitas, para lançar a pena a fôlegos prosódicos de mais vasto empenho. Não se pense, contudo, que estas crónicas/contos sobre as franjas cultas da pequena e média burguesia, que o escritor Sérgio de Sousa, num território discursivo em que se vem destacando, uma vez mais encena neste nascidos em meados do século XX.

As grandezas e misérias deste país periférico e mal gerido, visto através de simulacros da vida quotidiana de uma classe e das grandes urbes, como Lisboa, dos enlaces, dos jogos de sedução, dos cometimentos morais, políticos, económicos, sexuais e sociais (num pudor a deslizar subtilmente para um erotismo de fino recorte), de uma classe média que, nos tempos do fascismo luso, entre 1958 e os primeiros anos de 1970, anteriores ao 25 de Abril, tinha ainda algum poder económico e de intervenção no tecido social salazarento e não se encontrava, como hoje acontece, em vias de protelarização.

Em três das narrativas, Verão de 1958; Anos sessenta, segundo lustre; e Primórdios da década de setenta, o autor deambula por esses corredores de um esquivo poder, entre gente das profissões liberais, ou encostados ao aparelho de um Estado patriarcal para quem siga as regras do bom-viver (médicos, advogados, arquitectos, engenheiros, professores universitérios), gente de posses e hábitos regrados, uma amante para quebrar rotinas e chatezas da vida, umas férias no Baleal, incursões, já nos anos 1980, à praia do Abano, que estava na moda, as ovelhas ronhosas da família que não casam e andam sempre com os tarecos às costas por todos os bairros da cidade; professando credos fora da Concordata, protestantes, outros, como o Arqt. Ludgero Bach que apenas entrava em lugares de culto para o preito a algum próximo que tivesse falecido, sendo-lhe indiferente que se tratasse de igreja, sinagoga ou mesquita. Um liberal, graças a deus.

As famílias burguesas, com criadas e chauffer, jantares aos fins-de-semana, para manter a linhagem e o atavio de egrégias memórias, as meninas que já iam para a universidade estudar Letras e outras, já lá pelos anos sessenta, atrevendo-se pelos corredores da Faculdade de Direito, as lutas estudantis, o necrotério a céu aberto que era este país de incenso e homilias à virgem, o Dr. Alberto Monsanto que apresentava uma grande qualidade, ser rico, e educado, ao ponto de D. Célinha o considerar também uma «criatura de Deus». Uma burguesia, esta que primorosamente Sérgio de Sousa nos descreve, que não se envolvia nas questões políticas a fundo, mas era bem-pensante e, até, anti-salazarista com moderação q.b.

Depois, os anos da liberdade e das grandes transformações sociais do País, em narrativas que nos estimulam a memória, apontam feridas, nos dizem do desabrochar de um outro tempo, de outra gente, de outra voragem em torno de futuros a haver: Até ao final dos anos setenta,Os insanos anos de 1985,1986,Chegado o ano de 1990,O mítico ano 2000, O século XXI. Nestes contos já a vida palpita nos subúrbios, são já as mulheres que se insinuam, outras, que avançam com as grandes rupturas, que se rebelam contra a moralidade hipócrita herdada do fascismo e dos ensinamentos ultra-reaccinários de D. Francisco Manuel de Mello, que vão paulatinamente tomando o poder; as que lêem O Avante!, jornal que fala sobre as lutas dos trabalhadores por todo o país. Mulheres que amam, que têm desejos e os manifestam sem temores, que percorrem os caminhos do lesbianismo sem arrependimentos, que sobem a pulso os territórios blindados de velhas estruturas patriarcais, Elas, as que se sentaram a falar à roda de uma mesa/a ver como podia ser com os patrões, no dizer de Maria Velho da Costa.

Sérgio de Sousa é um soberbo descritor de universos femininos, dos seus medos e angústias, dos seus territórios íntimos, dos seus anseios e lutas, desejos e paixões. Como Urbano, Abelaira ou David Mourão-Ferreira, também o autor de Narrativas Femininas nos fala, com lúcida sensibilidade, do corpo das mulheres, do seu prazer, conseguindo integrar no seu apodítico discurso esses mundos, essas evidências, esse clamor orgânico da outra metade do céu, tantos séculos relegados para as sombras, para os ultrajes e para a submissão.

Um livro a ler serenamente. Um bálsamo para os dias insanos que vivemos.




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