Um manifesto em celulóide
A câmara de filmar é apresentada por Vertov como um organismo que produz imagens
A crítica e a história do cinema reservam hoje um lugar de destaque a O Homem da Câmara de Filmar (Chelovek s kino-apparatom, 1929), realizado por Dziga Vertov, como uma obra soviética que «não é apenas um filme, é também uma declaração, um manifesto, escrito em celulóide», como escreveu Yuri Tsivian em 2011. Nele encontramos o cinema a descobrir e a reflectir sobre as suas próprias possibilidades como linguagem artística. Em 2012, na mais recente votação organizada pelo British Film Institute dos melhores filmes da história do cinema, ficou em 8.º lugar. Na recentíssima lista publicada pela mesma instituição, anunciada em Dezembro de 2022, ficou em 9.º lugar, confirmando o reconhecimento do seu valor e da sua influência. Mas nem sempre foi assim.
A primeira crítica ao filme foi publicada pelo jornal Proletars’ka Pravda a 21 de Dezembro de 1928. É atribuída ao poeta Mykola Ushakov e descrevia com entusiasmo «a frescura da sua visão», «as suas realizações formais» e a «sua profundidade temática». Quando o filme estreou em Janeiro do ano seguinte, a recepção foi mais fria, nomeadamente de colegas cineastas como Sergei M. Eisenstein, que faziam e defendiam um cinema diferente. Estas vozes consideravam que a forma esmagava o conteúdo.
No Reino Unido, país com um cinema documental de relevo, o filme de Vertov foi visto como pouco mais do que uma brincadeira, uma sucessão de truques. A rápida sucessão de imagens, com uma média de duração de apenas 1,6 segundos, foi particularmente criticada pelo crítico do The New Times, Mordaunt Hall, que considerou o filme como um «conjunto desarticulado de cenas» que «não leva em consideração o facto de que o olho humano fixa por certo espaço de tempo aquilo que prende a atenção».
O interesse pelo filme foi crescendo ao longo das décadas seguintes, nomeadamente nos círculos mais cinéfilos e no ensino superior. A partir da década de 1960, quando é mostrado de novo em Roma e em Nova Iorque, no Museu de Arte Moderna, a obra é reavaliada com maior impacto público. A sua influência é notória no cinema-verdade (em francês, cinéma vérité) que se desenvolveu nessa altura e também entendia a câmara como instrumento de revelação da complexa e dinâmica verdade do mundo.
Uma prova do novo interesse pelo filme foi a sua projecção em diversas sessões em vários países, com música original, a partir de 1983. De lá para cá, grupos como os estadunidenses Alloy Orchestra (em 1995) ou os espanhóis Caspervek Trio (em 2014) e compositores como o norueguês Geir Jenssen (1996) e o inglês Michael Nyman (em 2002), têm criado música para acompanhar O Homem da Câmara de Filmar e contribuído para a visibilidade constante do filme. A banda The Cinematic Orchestra foi contratada para gravar uma nova partitura para o evento de abertura do Porto – Capital Europeia da Cultura em 2001.
Hoje, o filme é visto como a grande concretização da teoria e prática do cine-olho. Num famoso texto-manifesto escrito por Vertov lê-se: «Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, que vos mostro o mundo do modo com só eu posso vê-lo.» Se o cine-olho produz imagens inacessíveis ao olho humano através da máquina, esses fragmentos são depois montados em sequência conforme a visão do cineasta, criando uma nova percepção da realidade, de base fílmica. Então, a câmara é uma máquina que interage com o corpo humano, que transforma a perceção humana.
Quando um olho que age e reage é atribuído a uma máquina, esse órgão de visão activo torna-se numa demonstração de que ela está viva. A câmara de filmar é apresentada por Vertov como um organismo que produz imagens. O seu olho, a sua lente, afasta-se e aproxima-se, com o diafragma a servir como pálpebra. A câmara procura, enquadra, regista, como se estivesse viva, chegando mesmo a tornar-se um objecto animado no último capítulo do filme.