Encruzilhadas das artes visuais
As artes foram subtraídas da sua função crítica, do seu valor social
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Espanta-se todo o mundo e ninguém que a grande notícia nas artes em 2022 sejam os 16,6 mil milhões de euros de vendas, pelas três maiores leiloeiras do mundo. Todo o mundo fica boquiaberto com os valores astronómicos do mercado das artes. Ninguém fica deslumbrado com as obras de arte que nesse mesmo ano de 2022 se expuseram nas inúmeras galerias, fundações de artes, feiras, bienais, toda a constelação de espaços onde estacionam os variegados objectos, instalações, performances e etecetera a que se cola um selo certificador pela tropa fandanga de comissários, curadores e outros bichos móis que operaram nos últimos decénios, a total dissociação entre o valor atribuído a esses objectos e as condições materiais e sociais da sua produção.
Depois das vanguardas artísticas dos princípios do séc XX terem entrado em falência, o valor de uso da arte degradou-se até hoje se confinar no seu valor de troca, em que o dinheiro é a forma e o fim e os objectos das artes, qualquer que seja a sua forma de representação, acabam por corporizar um acabado exemplo do feitichismo da mercadoria.
Actualmente, as colecções de arte distinguem-se não pelo valor estético das obras que as compõem, mas pela sua rentabilidade e pelos encaixes que proporcionam aos seus detentores. São um veículo de reconhecimento social para os seus proprietários, mesmo que nada entendam de estética ou tenham algum prazer visual na apreciação das obras. Para eles, as obras de arte, com a vantagem única de serem objectos não consumíveis, são o adubo do seu narcisismo sem nunca as dissociarem do seu valor especulativo. Nos nossos dias, adquirir obras de arte é um processo em que se conjugam a distinção social e a apropriação e financeirização dos valores da cultura pelos homens de negócios, em paralelo com a demissão dos Estados em estabelecer políticas culturais, entregando-as aos mercados que não conhecem outra hierarquia cultural que não seja a do que é vendável.
As artes foram subtraídas da sua função crítica, do seu valor social, por um processo mercantil que destruiu a sua relativa autonomia sujeitando os artistas ao calculismo bastardo da turbamulta dos «encarregados de uma subtil actividade de manipulação na gestão da produção cultural», como Pierre Bourdieu lucidamente analisou, que estão sempre entre «dois eventos promocionais em que a arte é, sempre e só mercadoria e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades » (José Luís Porfírio), numa sucessão acelerada de modas e humores, em que as artes se dissociam da vida numa vertiginosa actividade tautológica estético-mercantil.
Blanchot definiu com clareza a situação actual, em que «é secretamente dramático saber que a cultura não pode fazer mais do que desdobrar-se gloriosamente no vazio contra o qual nos protege dissimulando-o». Nas artes visuais já nem sequer o camuflam, fazem parte desse vazio, as excepções só confirmam a regra. Deixaram de radiografar o mundo como o fizeram durante séculos e, num curto lapso de tempo, de o interpretar de formas diversas, como o fizeram as vanguardas artísticas dos inícios do séc. XX, construtivismo e futurismo soviéticos, surrealismo e dadaísmo. O fim das vanguardas de algum modo representou o fim das artes visuais, registando-se um regresso ao dadaísmo não como protesto contra um mundo sem dignidade nem dignidade para oferecer mas para seu uso publicitário em grande ostentação do kitsch, no frenesi do ritmo das modas, que acabam celebrados no mercado dos objectos de luxo.
A urgência é reinvestir estética e politicamente a arte, salvando-a das areias movediças do deserto social desta sociedade.