Alterar o modelo de apoio às artes, criar o serviço público de cultura

A convite do PCP, dezenas de criadores e trabalhadores da Cultura (do teatro, da música, do cinema, das artes plásticas, da reflexão crítica, da produção de eventos, do movimento associativo) participaram, dia 9, na audição «Apoio às artes, resultados e modelos», realizada na Assembleia da República. Na ocasião, o Secretário-geral do Partido, Paulo Raimundo, apelou aos presentes a que empenhem a sua dedicação e criatividade também «numa luta que vale a pena», pela criação de um verdadeiro Serviço Público de Cultura.

Mais de 100 estruturas elegíveis ficaram sem apoio financeiro

«Sem cultura não há emancipação nem democracia.» A afirmação, proferida por Paulo Raimundo no final da audição de segunda-feira, dá bem a dimensão do que ali esteve em debate durante toda a tarde: a cultura é coisa séria e não mero entretenimento ou área de negócio, como tem vindo a ser tratada por sucessivos governos da política de direita, e o actual não é excepção: o recente concurso de apoio às artes, que por falta de orçamento deixou de fora mais de uma centena de estruturas culturais que cumpriam os critérios estabelecidos é disto exemplo. E, reconheça-se, particularmente revelador.

Como lembraria, no final dos trabalhos, o Secretário-geral do Partido, «por falta de dotação financeira mais de 100 estruturas culturais de todo o País foram excluídas e não obtiveram apoio», pese embora terem sido avaliadas positivamente e cumprirem todos os critérios de elegibilidade estabelecidos. Simplesmente, «não há dinheiro»: é esta a justificação do Governo, o mesmo que decidiu entregar 140 milhões de euros às concessionárias das autoestradas e 3 mil milhões às empresas de electricidade, transferidos pela via do Orçamento do Estado e de outros expedientes. Apenas 20% das estruturas que se candidataram não foram consideradas elegíveis.

Assim, e ponderando apenas as candidaturas aprovadas na modalidade bienal, na dança estão propostas para apoio 8 das 20 candidaturas; na música e ópera apenas 7 das 15; no cruzamento disciplinar, circo e artes 11 das 17; nas artes visuais, 8 das 29; no teatro 23 das 42; e na programação 13 das 46.

No seguimento do concurso, a histórica companhia teatral nortenha Seiva Trupe decidiu suspender a actividade a partir de 1 de Janeiro e muitas outras estão em risco de seguir o mesmo caminho.

Novas regras para o sector

Ao longo da tarde, e à excepção das intervenções de Paula Santos e Jorge Pires, da Comissão Política do Comité Central do PCP, e do Secretário-geral do Partido, foram os mais de 50 criadores, trabalhadores e representantes das cerca de 30 estruturas vindos de vários pontos do País, a dar conta da dura realidade que o sector atravessa. Da precariedade laboral aos vencimentos parcos e irregulares; das mirabolantes exigências burocráticas ao atraso no pagamento dos apoios públicos; da padronização de escolas artísticas e temáticas à constante necessidade de encontrar financiamentos privados que assegurem a sobrevivência de estruturas e de quem nelas trabalha; das dificuldades acrescidas colocadas pelo aumento dos preços, principalmente de energia e dos combustíveis, à autêntica razia de estruturas de criação artística em vastas zonas do País.

Tudo isto deveria ter sido dito directamente ao ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, mas o PS recusou a proposta do PCP de realizar uma audição parlamentar com criadores e profissionais da Cultura. Os comunistas decidiram, então, avançar sozinhos para a audição, confrontando ontem o ministro, na Assembleia da República, com muitas das questões ali colocadas. A ida do titular da Cultura ao Parlamento, aliás, foi solicitada há mais de um mês, mas só agora Pedro Adão e Silva se dignou a comparecer.

Dos diferentes testemunhos sobressaiu ainda uma forte determinação para lutar pelo reforço do financiamento para o sector (o famoso «1% para a Cultura»), pela correcção de injustiças nos concursos, por um novo modelo de apoio às Artes e à Cultura, por um mais activo e determinante papel do Estado na garantia do acesso a todos à criação e fruição cultural. Para que esta luta floresça, avisou-se, é preciso ter cuidado com as «cascas de banana» lançadas para dividir o sector da Cultura entre os que receberam apoios e os que deles ficaram excluídos. A própria audição, aliás, exemplificou esta unidade, com uns e outros unidos na exigência de uma nova política cultural.

Na memória estavam ainda, frescas, as grandes mobilizções que, em 2018, uniram o sector e forçaram o governo a aumentar o financiamento da Cultura e a apoiar muitas das estruturas que, também nesse ano, tinham ficado excluídas numa primeira fase. Ontem de manhã houve um protesto junto à Assembleia da República (ver página 32), mas a luta é para continuar, garantiram muitos dos presentes. Com o apoio e estímulo do PCP, acrescentou o Secretário-geral.

 

Mais investimento e serviço público

No mesmo dia em que realizou a audição, o PCP entregou na Assembleia da República um projecto de resolução no qual propõe medidas para a correcção dos resultados do concurso de apoio às artes e reforço do seu financiamento.

Nessa proposta, o Partido recomenda um reforço superior a 33 milhões de euros na rubrica do orçamento da Direcção Geral das Artes, de modo a garantir o apoio a todas as estruturas com candidatura elegível; a revisão integral da elegibilidade das estruturas, candidaturas e atribuição de apoios; e a criação de um mecanismo que assegure o apoio financeiro imediato às estruturas cujos apoios tenham cessado até à correcção dos resultados.

Mas a proposta do PCP para o sector vai muito para lá dos concursos. Aliás, é toda a concepção do modelo que é posta em causa pelos comunistas, com Jorge Pires, da Comissão Política, a sublinhar que o «modelo concursal não é o que serve os artistas, as estruturas e o povo». Determinante é a questão do financiamento: no debate do Orçamento do Estado para 2023, o PCP propôs que a verba do apoio às artes rondasse os 86 milhões de euros, a que acrescentou 24 milhões antes ainda de saírem os resultados do teatro. Com este montante, sublinhou Paulo Raimundo, «estava assegurado o apoio a todas as estruturas de criação artística até 2026». PS e IL votaram contra; PSD e Chega abstiveram-se: «são eles os responsáveis pela situação de muitas das estruturas culturais», acrescentou Paulo Raimundo.

Se no que respeita ao financiamento, o PCP propõe 1% do Orçamento do Estado para o sector, «no caminho para a atribuição de 1% do PIB, conforme recomendação da UNESCO», defende ainda a criação de um Serviço Público de Cultura, que respeite a liberdade cultural, combata a precariedade, os baixos salários, a insegurança e as «falsas soluções contidas no Estatuto do Profissional da Cultura». O objectivo é pôr fim ao pagadigma competitivo do financiamento da criação artística, estabilizando apoios, definindo objectivos de serviço público e assegurando a descentralização.

 

«O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais».»
in Constituição da República Portuguesa, artigo 73.º, 3

«No ideal e projecto dos comunistas, a democracia tem quatro vertentes inseparáveis – política, económica, social e cultural:

(…) – democracia cultural baseada no efectivo acesso das massas populares à criação e fruição da cultura e na liberdade e apoio à produção cultural.»
in Programa do Partido Comunista Português

 

«Todas as estruturas devem ser apoiadas e este Modelo de Apoio às Artes não é a solução para garantir o direito à cultura.»
Paula Santos, presidente do Grupo Parlamentar do PCP

«O nosso Estatuto [do Profissional da Cultura] é o ‘estatuto da pobreza’.»
Susana Gaspar, Acção Cooperativista

«Há um problema de base a nível orçamental, enquanto não se resolver este problema estrutural as artes andarão sempre à míngua e numa situação muito fragilizada.»
Nuno Nicolau Salgado, Procur.arte

«O estado deve garantir a livre criação artística, sem quaisquer constrangimentos. É o direito à criação que permite o direito à fruição, é esse o primeiro direito, e os dois instrumentos essenciais são o financiamento adequado e a existência de um serviço público de cultura.»
Pedro Penilo, Manifesto em Defesa da Cultura

«Era importante reconsiderar que o que os artistas fazem é um trabalho e que tem de ser considerado nessa perspetiva na sociedade.»
Helena Vasques, Associação Intervalo Tempo – Coligação da Diversidade Cultural

«Já estive a ler o regulamento e há outra vez regras, como a de ter de incluir no projecto alguém com menos de 25 anos, formado e já inscrito como tendo o Estatuto. É ridículo! Eu quero ter pessoas destas, mas e se não encontrar?»
José Moças, Tradisom Produções Culturais

«Se uma candidatura é elegível, é completamente incongruente que não seja apoiada, é inadmissível. (…) Se os concursos limitam a criação artística a determinadas temáticas, não são os artistas a fazer a obra, mas sim o Estado a fazer cultura.»
Manuel Wiborg, Teatro do Interior

«É extraordinariamente difícil de preencher e de fechar candidaturas da DGArtes. Demora uma quantidade de tempo absurda. É extremamente difícil de perceber o que é que os critérios são, o que é que as palavras querem dizer.»
Francisco Mota, Brotéria Associação Cultural

«Temos um problema de fundo, uma suborçamentação ligada à ausência de uma política cultural.Temos um ministério que é incapaz. A Direcção Geral das Artes não tem capacidade para cumprir a sua missão, não consegue garantir as estruturas que são dependentes dela.»
Rui Galveias, CENA-STE

«Para a semana vou iniciar uma turné com uma orquestra a fazer Stravinsky. Somos 80, à bilheteira. Esgotei Torres Vedras e ganhei cinco euros por bilhete. Vamos fazer o Coliseu de Lisboa, 40 euros o bilhete, e nós ganhamos metade. Dá para o hotel e para as refeições.»
Rafael Paz Carriço, Vortice Dance Company

«Aproveitar para desmascarar um pouco o que tem sido o discurso do Governo e toda a propaganda. Anunciam 2% para a Cultura e um forte investimento, mas o que observamos é uma total discrepância com vida de quem trabalha na cultura.»
Tiago Santos, Manifesto em Defesa da Cultura

«O sector da cultura e os empregos em causa são mais do que os dos artistas, é imensa gente que está com a sua sustentabilidade em risco nos próximos tempos.»
Eduardo Faria, Varazim Teatro

«O PCP faz o que o Ministério da Cultura devia fazer, promover audições às companhias que desenvolvem o seu trabalho na área da cultura. Não digam subsídios. É financiamento, nós estamos a cumprir a Constituição.»
Vítor Pinto Ângelo, Teatro Extremo

«No caso dos artistas visuais, o novo Estatuto [do Profissional da Cultura] não nos serve, porque é para quem pode aceder a um contrato, e nós somos autores.»
Pedro Gomes, Associação de Artistas Visuais

«Uma das coisas que vão ser completamente arrasadas são os públicos, porque estas estruturas do interior são fundamentais.»
Sofia Neuparth, c.e.m. – centro em movimento

«Quando falamos do financiamento da Cultura e da exigência de um por cento do Orçamento do Estado isto é a diferença entre 300 e tal milhões e 900 milhões. Imaginem o que era ter 900 milhões num ano para a Cultura.»
Jorge Pires, Comissão Política do CC do PCP

«A pandemia pôs a nu a fragilidade do sector. (…) O trabalho gratuito dos profissionais da cultura é uma grande parcela do financiamento da cultura.»
Maria Augusta Fernandes, economista

«O Ministério da Cultura é um embuste, ainda por cima num distrito como o nosso (…), com 2000 colectividades.»
Augusto Figueiredo, Federação das Colectividades do Distrito de Santarém

«Atrasos sucessivos por parte da Direcção Geral das Artes colocam todas as estruturas em situação de endividamento. São contratos congeladas, rendas por pagar... Como é que as estruturas sobrevivem neste tempo?»
Ruy Malheiro, Escola de Mulheres

«O que é que vai realmente fazer pressão no Governo? Só uma acção drástica e dramática é que pode fazer mossa.»
Inês Soares, Associação Pogo