Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes
A obra literária de Soeiro Pereira Gomes é intemporal e imprescindível
A reedição das Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes, pelas edições Avante!, edição que reproduz a bela e expressiva capa desenhada por Álvaro Cunhal para a primeira edição de Esteiros, à qual se juntam as ilustrações de Rogério Ribeiro publicadas na edição de 1979, acontece no tempo certo, dado que as novas gerações, assoladas por desinformação violenta e insidiosa, precisam de instrumentos que lhes permitam aprofundar o caminho de descoberta da extrema miséria, social e humana, da realidade portuguesa, desde a Guerra Civil espanhola aos dias libertários de Abril de 1974, vividos sob o consulado de Salazar e Caetano. Narrativas e denúncias da vergonha e dos crimes que o nosso neorrealismo, iniciado com Gaibéus, de Redol, modelar e superiormente inscrevem em dezenas de textos que são hoje incontornáveis clássicos da nossa literatura.
As obras de Soeiro Pereira Gomes pertencem a esse patamar superior da nossa novelística, a começar no seu emblemático Esteiros, que revela, a um país fechado pelo medo, a realidade político-social dos universos da exploração do trabalho infantil, cujas coordenadas mais abjectas escapavam às consciências burguesas e a grande parte da intelectualidade urbana e bem pensante.
Soeiro Pereira Gomes introduz no discurso literário de Esteiros, dados sociológicos novos, uma linguagem sensível e arguta que mergulha fundo nesse nicho de desprezível exploração, dado que exercida sobre os mais indefesos elementos da base social, levando o leitor a tomar consciência da vida agreste desse núcleo sobre o qual o capital e o fascismo exerciam toda a sua inumana brutalidade, exibindo sem disfarce a infâmia ideológica e funcional que o estruturava – essas vulneráveis ilhas humanas, ainda não inscritas no corpo diegético do neorrealismo: o mundo da infância e da pré-adolescência, da miséria que invade, desde o berço, esse território que queríamos de descoberta e construção do Ser, invadido de forma violenta pela ganância que vai destruindo sonhos, capacidades, modos outros de crescimento e realização pessoal e colectiva; um mundo do desenrasca, da luta quotidiana por um naco de pão para enganar a maligna, do trabalho escravo nos telhais, da rebeldia, da ternura, do companheirismo, da aventura e da transgressão – esse universo épico, que o verbo dorido e sensitivo de Soeiro Pereira Gomes capta e descreve com argúcia, um fresco denunciador da sordidez que o fascismo luso exibia nas suas invisíveis margens (onde os tiques da ignomínia foram mais profundos e duradouros), na análise que constrói, ancorado nos traços significantes da matéria social e histórica que dominava a Europa – o feroz capitalismo ungido no terror –, no modo como elabora, a partir das personagens principais (Gineto, Gaitinhas, Maquineta, Sagui) a representação realista e modelar desse período, das circunstâncias atípicas em que a sua acção (partindo do individual para o colectivo) nele se desenvolve, marcando as componentes teóricas e históricas que condicionaram o desenvolvimento do país nessa fase (1930/40). Soeiro é, com Esteiros e, mais tarde em Engrenagem, um intelectual que conseguiu juntar teoria e prática, transformando a sua escrita em processo histórico real, como defendia Gramsci.
O presente volume reúne, para além de Esteiros, outro dos grandes textos de Soeiro que é Engrenagem, no qual o autor percorre, com o mesmo assertivo olhar, o universo do trabalho sem direitos, os alçapões de uma engrenagem que vai destruindo a dignidade e os sonhos, desde os camponeses de terras sem horizontes, aos operários nas fábricas, também eles tornados máquinas insensíveis, ou a abrir estradas a pés descalços ou de alpercatas cambadas, pés gretados e sangrando sobre brita, como os pés do velho Gregório que se arrasta sem forças, tentando erguer-se, porque a fome não lhe dá tréguas, para cair de novo atrapalhando o trânsito, como escreveu Chico Buarque, até ao dia desesperado em que «Gregório se levantou com lentidão, mas resoluto. Esticou a corda, deu-lhe um nó corredio… E de madrugada, quando os pássaros chilrearam ao regresso do Sol, o corpo do velho bamboleava ainda, pendente da corda, devagar, cada vez mais devagar…»
O presente volume das obras de Soeiro Pereira Gomes inclui ainda Contos Vermelhos, crónicas e outros textos que contribuem, face ao comprometimento social que expressam, para uma mais apurada, interventiva e abrangente reflexão sobre as complexidades ético/estéticas da arte literária que ao real se subordina. O universo do trabalho vs. a exploração que o envolve, ontem como hoje. Uma obra intemporal e imprescindível.