Inundações, política de solos e o muito que há por fazer

Lino Paulo

Na noite de 12 para 13 de de­zembro, deste ano, re­gistou-se uma ele­vada plu­vi­o­si­dade em di­versos pontos do Con­ti­nente, com es­pe­cial in­ci­dência na Área Me­tro­po­li­tana de Lisboa (AML). Se­gundo o IPMA, nas es­ta­ções me­te­o­ro­ló­gicas da re­gião, «o total de pre­ci­pi­tação re­gis­tado (terá sido) su­pe­rior, entre uma vez e meia e duas vezes, ao valor da normal para o mês de de­zembro».

É ur­gente pro­curar o equi­lí­brio que acau­tele fí­sica e tem­po­ral­mente o uso dos solos

Lusa

Este é um facto in­des­men­tível, como também o são os factos das ba­cias hi­dro­grá­ficas da re­gião de Lisboa ofe­re­cerem áreas re­du­zidas, logo sus­cep­tí­veis de po­ten­ciar des­fa­vo­ra­vel­mente os im­pactos de abun­dantes quedas plu­vi­o­mé­tricas, e de a pró­pria ci­dade estar cons­truída sobre uma rede com­plexa de li­nhas de água, aliás re­pli­cada nos seus to­pó­nimos: Sete Rios, Rego, Al­cân­tara, Ar­roios, entre ou­tros.

Não se pode pois iludir nem a im­por­tância dos ele­mentos na­tu­rais nem a re­a­li­dade fí­sica em que as­senta o po­vo­a­mento da AML. Ambos têm de ser tidos em atenção na pre­venção do risco fí­sico e não apenas das cheias.

Para o mo­delo de cres­ci­mento do­mi­nante, a pre­venção do risco, no re­fe­rente a cheias, as­senta es­sen­ci­al­mente em me­didas de con­trolo da na­tu­reza como, por exemplo, através de obras es­tru­tu­rais de con­trolo de cursos de água ou de en­ca­na­mento em tú­neis de dre­nagem. Não se nega a ne­ces­si­dade de, para cor­rigir an­te­ri­ores erros de ocu­pação do solo, terem de ser feitas muitas dessas obras. Im­porta, no en­tanto, ter sempre pre­sente que não existem me­didas es­tru­tu­rais que ga­rantam a pro­tecção em todas as si­tu­a­ções. As obras só fun­ci­onam, por me­lhor pro­jec­tadas que sejam, até um de­ter­mi­nado nível de pro­ba­bi­li­dade de ocor­rência dos fe­nó­menos in­du­tores do risco.

É es­sen­cial e ur­gente cor­rigir erros de ocu­pação do ter­ri­tório e, quando tal se re­vele im­pos­sível, cons­truir in­fra­es­tru­turas que afastem o risco das pes­soas que ha­bitam tais ter­ri­tó­rios. Mas é so­bre­tudo ne­ces­sário evitar o risco em todas as áreas iden­ti­fi­cadas como pe­ri­gosas e que ainda não se en­con­trem ocu­padas. É sempre mais ba­rato, e so­bre­tudo mais eficaz em termos de poupar vidas hu­manas, evitar o risco do que mi­tigar o risco. A me­dida mais ade­quada será sempre afastar as pes­soas da zona de risco.

Tra­gé­dias e a «mancha de óleo»

A Área Me­tro­po­li­tana de Lisboa tem um pas­sado re­cente de tra­gé­dias as­so­ci­adas a cheias.

Re­corde-se a de 25 para 26 de No­vembro de 1967, que pro­vo­caram a morte de cerca de 700 pes­soas e a des­truição de mais de 20 mil casas e de di­versos equi­pa­mentos e in­fra­es­tru­turas. É ver­dade que se as­sistiu a ele­vada pre­ci­pi­tação, mas a tra­gédia as­sentou na cons­trução ao longo dos cursos de água, ocu­pando leitos de cheia, na cons­trução sobre co­linas des­li­zantes, na ca­na­li­zação, com secção di­mi­nuta, de al­gumas li­nhas de água, na falta de lim­peza de rios e ri­beiras. As ví­timas foram es­sen­ci­al­mente tra­ba­lha­dores a vi­verem em si­tu­a­ções in­dignas em bairros de bar­racas ou de lo­te­a­mento ilegal.

Re­corde-se as de 18 de No­vembro de 1983, que pro­vo­caram 10 mortos e o de­sa­lo­ja­mento de 1800 fa­mí­lias. Tinha cres­cido a ocu­pação do solo, com o con­se­quente au­mento da im­per­me­a­bi­li­zação e con­ti­nu­avam o in­su­fi­ci­ente di­men­si­o­na­mento de águas re­si­duais e plu­viais e a falta de lim­peza das li­nhas de água. Con­ti­nuava a cons­trução em zonas inun­dá­veis por cheias rá­pidas.

São tra­gé­dias que re­sultam de po­lí­ticas er­ró­neas de or­de­na­mento do ter­ri­tório.

Em 1967, al­guns laivos de­sen­vol­vi­men­tistas do fas­cismo ti­nham feito afluir a Lisboa mi­lhares de fa­mí­lias que pro­cu­ravam na ci­dade con­di­ções de vida menos mi­se­rá­veis do que aquelas de de dis­pu­nham na pro­víncia. Eram, no geral, tra­ba­lha­dores in­di­fe­ren­ci­ados com em­pregos pre­cá­rios na cons­trução civil e nas obras pú­blicas. O mo­delo de cres­ci­mento me­tro­po­li­tano da ci­dade, em «mancha de óleo», em­purrou-os para ex­pan­sões de­sor­de­nadas em «pá­tios» de al­gumas al­deias, para enormes áreas de ur­ba­ni­zação ilegal, os cha­mados «clan­des­tinos», e para bairros de bar­racas.

Este cres­ci­mento em mancha de óleo con­ti­nuou a do­minar e foi até ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado com um plano da re­gião de Lisboa, ela­bo­rado no go­verno de Mar­celo Ca­e­tano. Plano este que, aliado à le­gis­lação do lo­te­a­mento ur­bano, de 1965, veio a con­so­lidar um mo­delo de pe­ri­fe­rias onde o solo ur­ba­ni­zado le­gal­mente se es­tendia ao longo das prin­ci­pais in­fra­es­tru­turas viá­rias de acesso à ca­pital e onde vas­tís­simos es­paços in­ters­ti­ciais a essas in­fra­es­tru­turas fi­cavam aban­do­nados ao lo­te­a­mento de gé­nese ilegal e aos bairros de bar­racas. O res­peito pela na­tu­reza não foi mi­ni­ma­mente tido em conta neste mo­delo de ocu­pação.

Avanços e per­sis­tên­cias

Com o 25 de Abril, sur­giram im­por­tantes me­didas le­gais de or­de­na­mento do ter­ri­tório. Foi pu­bli­cada a pri­meira Lei de Solos; foi ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado o prin­cípio de cri­mi­na­li­zação por uso in­de­vido de solo; ti­veram início in­ter­ven­ções de in­fra­es­tru­tu­ração nos ter­ri­tó­rios de gé­nese ilegal e, com o pro­cesso SAAL, ha­bi­tantes de bairros de bar­racas, num mo­delo exem­plar de par­ti­ci­pação po­pular, deram início à re­versão das suas con­di­ções in­dignas de ha­bi­tação.

A Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa veio afirmar que «todos têm di­reito a um am­bi­ente de vida hu­mano, sadio e eco­lo­gi­ca­mente equi­li­brado e o dever de o de­fender» e que é «in­cum­bência do Es­tado as­se­gurar tal di­reito» (ar­tigo 66.º). E vai mais longe ao de­ter­minar que «o Es­tado, as re­giões au­tó­nomas e as au­tar­quias lo­cais de­finem as re­gras de ocu­pação, uso e trans­for­mação dos solos ur­banos, de­sig­na­da­mente através de ins­tru­mentos de pla­ne­a­mento, no quadro das leis res­pei­tantes ao or­de­na­mento do ter­ri­tório e ao ur­ba­nismo, e pro­cedem às ex­pro­pri­a­ções dos solos que se re­velem ne­ces­sá­rias à sa­tis­fação de fins de uti­li­dade pú­blica ur­ba­nís­tica» (ar­tigo 65.º).

O pro­cesso con­trar­re­vo­lu­ci­o­nário, nesta ma­téria ini­ciado ainda no VI Go­verno Pro­vi­sório e po­ten­ciado no I go­verno cons­ti­tu­ci­onal, pre­si­dido por Mário So­ares, veio, es­pe­ci­al­mente após a pri­va­ti­zação da Banca, co­locar, de novo, o solo ao ser­viço da cap­tação da renda fun­diária pelo ca­pital fi­nan­ceiro.

É ver­dade que vasta le­gis­lação foi en­tre­tanto pu­bli­cada e muita dela com as­pectos po­si­tivos. Foi ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada, em 1982, a fi­gura de Plano Di­retor Mu­ni­cipal, foi criada, em 1983, a Re­serva Eco­ló­gica Na­ci­onal e, em 1998, foi apro­vada a Lei de Bases da Po­lí­tica de or­de­na­mento do Ter­ri­tório e do Ur­ba­nismo, com os con­se­quentes Re­gimes Ju­rí­dicos dos Ins­tru­mentos de Gestão do Ter­ri­tório e da Ur­ba­ni­zação e Cons­trução e todo um vasto con­junto de Pro­gramas Re­gi­o­nais.

Apesar deste vasto acervo le­gis­la­tivo, mantém-se do­mi­nante uma visão li­beral sobre a ac­ti­vi­dade do pla­ne­a­mento e do ur­ba­nismo, onde a prin­cipal pre­o­cu­pação pa­rece as­sentar na va­lo­ri­zação da pro­pri­e­dade imo­bi­liária, quer em enormes ex­pan­sões de solo ur­ba­ni­zável, no pa­ra­digma da Lei de Solos de 1998, quer no au­mento ex­po­nen­cial da renda fun­diária do te­cido ur­bano con­so­li­dado, no pa­ra­digma da Lei de Solos de 2014. E isto nada tem a ver com res­peito pela Cons­ti­tuição, com po­lí­ticas am­bi­en­tais ou de ha­bi­tação.

Bons exem­plos, a re­plicar

O re­sul­tado destas po­lí­ticas exige me­didas cor­rec­tivas. E existem bons exem­plos das mesmas na Área Me­tro­po­li­tana de Lisboa.

Em Al­mada, a cons­trução do Parque da Paz, com os seus 60 hec­tares, com a re­gu­la­ri­zação da rede hí­drica e a cons­trução de lagos que cons­ti­tuem im­por­tantes ba­cias de re­tenção, veio con­tri­buir para ter­minar ou, em si­tu­a­ções mais graves, ate­nuar os efeitos das cheias em toda a zona da Cova da Pi­e­dade. Di­fe­rente teria sido a re­a­li­dade se toda a área do parque ti­vesse sido ur­ba­ni­zada e im­per­me­a­bi­li­zada, como previa, lo­te­a­mento exis­tente antes do 25 de Abril.

Em Loures, por ini­ci­a­tiva da an­te­rior gestão mu­ni­cipal, foi de­sen­vol­vido o pro­grama «Valo Rio», vi­sando a re­a­bi­li­tação e va­lo­ri­zação dos rios e ri­beiras do ter­ri­tório mu­ni­cipal. Pro­grama que, em 2016/​17, foi res­pon­sável pela lim­peza de 28 hec­tares de solo junto de li­nhas de água. A ci­dade de Sa­cavém não terá so­frido as graves con­sequên­cias da úl­tima cheia de­vido aos tra­ba­lhos de­sen­vol­vidos na Ri­beira do Prior Velho, o ca­neiro de Sa­cavém.

Em Se­túbal, a cri­ação do Parque Ur­bano da Várzea, numa área de 19 hec­tares, onde muitos de­fen­diam ur­ba­ni­zação e im­per­me­a­bi­li­zação, é uma im­por­tante obra de en­ge­nharia hi­dráu­lica com as suas ba­cias de re­tenção. Nas úl­timas cheias terá sido res­pon­sável por não terem acon­te­cido as ha­bi­tuais inun­da­ções a norte da Av. Luísa Todi.

Em Sintra, a re­gu­la­ri­zação e a cons­trução de par­ques li­ne­ares ao longo da Ri­beira das Jardas e a du­pli­cação da ca­pa­ci­dade de vazão nos tú­neis sob o IC 19, terão evi­tado a re­pe­tição de cheias na ci­dade de Agualva-Cacém. Iguais obras ao longo do Jamor e a cons­trução de bacia de re­tenção no troço final da ri­beira de Ca­renque, antes da sua con­fluência com o Jamor, terão tido o mesmo re­sul­tado na ci­dade de Queluz.

Claro que, como disse atrás, são obras e como tal são sempre pas­sí­veis de fa­lhar por au­mento do nível de risco ou por erros co­me­tidos pos­te­ri­or­mente. É assim que todo o tra­balho feito no Jamor terá con­sequên­cias gra­vosas a ju­sante se, na con­fluência deste rio com o Tejo, vier a ser cons­truída a ur­ba­ni­zação «Porto Cruz». E todo o tra­balho em torno da ri­beira das Jardas/​Bar­ca­rena será in­con­se­quente se, em vez do Parque Ur­bano de Co­la­ride, a sua área vier a ser ur­ba­ni­zada e im­per­me­a­bi­li­zada como de­fende a pro­moção imo­bi­liária.

Sobre Lisboa, apenas dizer que a exis­tência de um PDM feito em obe­di­ência aos grandes in­te­resses imo­bi­liá­rios, uma gra­vosa ur­ba­ni­zação sub­ter­rânea, de caves, par­que­a­mentos e tú­neis, em choque com o sis­tema tra­di­ci­onal de dre­nagem, e uma cons­tante im­per­me­a­bi­li­zação de lo­gra­douros e in­te­rior de quar­tei­rões, exigem, antes de mais, re­visão e re­a­ná­lise de com­pro­missos que levem a grandes áreas de im­per­me­a­bi­li­zação em zonas crí­ticas.

Se tal re­visão, em res­peito pelo am­bi­ente, não for feita, de pouco ser­virão os me­diá­ticos tú­neis do plano de dre­nagem. Sem con­testar a sua exe­cução, da qual aliás a bacia de re­tenção da Praça de Es­panha já se mos­trou eficaz, há que exigir o fim da do­mi­nância do ca­pital fi­nan­ceiro sobre o solo da ci­dade. Há que pri­vi­le­giar o in­te­resse pú­blico, as pes­soas.

Dado que o solo é um bem fi­nito e im­pres­cin­dível para o fu­turo, é ur­gente pro­curar o equi­lí­brio que acau­tele fí­sica e tem­po­ral­mente o seu uso. É ao Es­tado e ao Poder Local que in­cumbe a gestão do solo e da ci­dade. Ao ca­pital fi­nan­ceiro apenas in­te­ressa o au­mento da renda do ter­reno.




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