A prioridade ao humano e a transformação das circunstâncias
A Conferência «Uma visão universal e progressista da História – a actualidade da obra de José Saramago», que o PCP promoveu no sábado, 22, em Lisboa, evocou uma obra literária e um autor a todos os níveis extraordinários. Mas fez bem mais do que isso: desafiou a que deles se partisse para a reflexão sobre a História e o seu curso, os desafios do presente e a projecção e construção do futuro, que se faz na luta de todos os dias.
«A prioridade absoluta tem de ser o ser humano»
Esta conferência foi um dos momentos altos do programa de comemorações do centenário de José Saramago que o PCP promove sob o lema «escritor universal, intelectual de Abril, militante comunista», três dimensões da vida e da obra de José Saramago que são, no fundo, uma só: Saramago não poderia ter escrito o que escreveu se não pensasse e agisse politicamente como pensou e agiu.
Isso mesmo realçou Jerónimo de Sousa na abertura dos trabalhos, que decorreram no auditório da Escola Secundária Camões, relevando o «penetrante olhar sensível e profundamente humano de José Saramago sobre a vida dos homens e sobre os “males do mundo”, mas também a acção e intervenção política concreta» que marcou toda a sua vida. A sua actividade democrática e antifascista iniciou-se ainda na década de 40, aderindo formalmente ao PCP no final dos anos 60, e a sua obra literária contém esse mesmo «profundo sentido de solidariedade e justiça e uma permanente inquietação sobre o destino da humanidade». O militante e o escritor são um – e apenas um.
José Saramago – foi ainda Jerónimo de Sousa quem o disse – levou muito a sério «aquele célebre princípio humanista “sou humano, nada do que é humano me é estranho”, que sintetizou um dia na expressão “a prioridade absoluta tem de ser o ser humano. Acima dessa não reconheço nenhuma outra prioridade”». Em muitas das suas obras é o povo a estar presente, e a ser protagonista. São os casos, entre tantas obras, de Manual de Pintura e Caligrafia, Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa, A Caverna, Claraboia ou A Viagem do Elefante. As suas reflexões profundas sobre tudo o que é inerente ao ser humano, em todas as latitudes e com as suas virtudes e os seus defeitos, estão presentes em livros como Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez.
Para o Secretário-geral do PCP, José Saramago tinha para si «como as mais luminosas palavras aquelas que retirara de A Sagrada Família, de Marx e Engels: “Se o homem é formado pelas circunstâncias, então será preciso formar as circunstâncias humanamente”. “Está aqui tudo”, chegou a afirmá-lo. Afirmou-o e assumiu-o nas múltiplas dimensões da sua vida». Para o dirigente comunista, trata-se de «mudar a realidade, mudar as circunstâncias de um mundo injusto e desigual para nos tornarmos mais humanos».
Reflexão, denúncia, combate
Foi ainda partindo de José Saramago que Jerónimo de Sousa realçou ser «imperioso e necessário», no mundo de hoje, reforçar o combate pela defesa e afirmação de valores básicos e elementares como a igualdade de direitos, a generosidade, a fraternidade, a justiça social e solidariedade humana. Esta luta, acrescentou, impele «à obrigação de permanecermos sempre atentos a todas as grandes desigualdades, injustiças e discriminações sociais».
Num momento em que a riqueza é crescentemente acumulada nas mãos de poucos, «enquanto a exploração prossegue e os trabalhadores e o povo empobrecem», o Secretário-geral do Partido realçou a actualidade das palavras proferidas por José Saramago em 1998, no banquete realizado em Estocolmo, comemorativo do Nobel da Literatura: «A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia.»
Jerónimo de Sousa citou ainda o escritor e militante comunista quando este escreveu que «dizer hoje “governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata cristão”, ou “conservador”, ou “liberal” e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer crer, mas sim em outro e inalcançável lugar – o do poder económico». Esta é uma realidade que «se tornou norma décadas a fio, expressa nesse rotativismo de pura alternância sem alternativa promovida e tacitamente concertada entre os partidos da política de direita e dos negócios», conclui a este respeito o dirigente do Partido.
A luta que os comunistas travam diariamente pela democracia, pelos direitos, pelo desenvolvimento soberano e pela paz é a mesma que sempre esteve presente na vida e na obra de José Saramago, que «determinou muitos dos seus passos, actos de solidariedade e tomadas de posição, em Portugal e em muitas outras regiões do mundo».
Obra perene e actual
Durante o dia de trabalhos, seguidos por uma plateia atenta e numerosa, foram proferidas 16 intervenções (ver textos nestas páginas). Para além dos três dirigentes do PCP – Jerónimo de Sousa, Jorge Pires e Margarida Botelho –, por ali passaram «intelectuais conhecedores da obra e da vida de José Saramago», como realçou o Secretário-geral do Partido, agradecendo o apoio, contributo e colaboração de quem «estudou, pesquisou, analisou e se confrontou» com a sua notável obra.
Como que a confirmar estas palavras, Margarida Botelho, do Secretariado, encerrou a conferência realçando que ali estiveram presentes «os grandes problemas da actualidade – a exploração, a desumanização das sociedades, as desigualdades e discriminações, o obscurantismo, a manipulação de consciências, o fascismo, a guerra. Abordámo-los a partir de livros escritos, alguns há 40 anos, por um homem que faria este ano 100».
Muito embora se tenha falado de diversas épocas históricas, algumas bem longínquas, a conferência, realçou a dirigente comunista, «não podia ter sido mais actual, mais ligada à vida, ao quotidiano, aos problemas dos trabalhadores, do povo e do País e às suas aspirações nos dias de hoje». Se é certo que as obras dos grandes artistas são imortais, isto é válido sobretudo para aquelas em que, como nas de José Saramago, «estão presentes valores universais: a liberdade, a democracia, a emancipação, a igualdade, a soberania dos povos, a paz, o respeito pela Natureza, a afirmação da humanidade, a esperança e a confiança nos povos, nos trabalhadores, na sua luta».
A cultura, referiu ainda Margarida Botelho, é terreno da luta de classes – «bem intensa» nos dias que correm. Isso é bem visível em José Saramago, que os «grandes poderes combateram enquanto foi vivo e tentam, de novo, agora, ocultar». Mas a sua vida e a sua obra são inapagáveis. Assim como os ideais que abraçou e que tão bem soube espelhar nos seus livros.
Tantas faces tem a Cultura
Numa conferência em que se celebrou a Cultura na sua mais elevada expressão – e na definição de Bento de Jesus Caraça –, a música e a poesia marcaram presença, sempre em ligação estreita com a arte que acima de tudo ali se celebrou, a literatura.
Ainda antes do início das intervenções, o palco foi da cravista Mafalda Nejmeddine, que interpretou magistralmente peças de Domenico Scarlatti, compositor italiano que esteve anos na corte de D. João V e que é referido no Memorial do Convento. A artista interpretou as sonatas K55, K9 e K141, apresentando-as antes e cruzando-as com o universo de José Saramago.
Em voz-off, Edite Queiroz tinha já citado a conhecida obra de Saramago: «Scarlatti pôs-se a tocar, primeiro deixando os dedos correr sobre as teclas, como se soltasse as notas das suas prisões, depois organizando os sons em pequenos segmentos, como se escolhesse entre o certo e o errado, entre a forma repetida e a forma perturbada, entre a frase e o seu corte, enfim articulando em discurso novo o que parecera antes fragmentário e contraditório.» Poder-se-á dizer que Mafalda Nejmeddine fez precisamente isso – na conferência como, semanas antes, no Palco 25 de Abril da Festa do Avante!.
Ainda da parte da manhã, Paulo Vaz de Carvalho e Pedro Marques deram vida a dois poemas de José Saramago – um, Ouvindo Beethoven, já conhecido na sua versão de Manuel Freire ali reinterpretada, e o outro, numa versão original de Paulo Vaz de Carvalho, Retrato do Poeta Enquanto Jovem. À tarde, as vozes de Fernando Tavares Marques e Cátia Terrinca, e só elas, ampliaram toda a força das palavras de Saramago, lendo poemas e textos do autor carregados de indignação, de ironia e de ternura.
Cá fora, numa banca, eram os livros (de Saramago, claro mas também outros) a ter a palavra. Eles, que têm essa capacidade de projectar mundos novos – e melhores.