A luta pela Cultura, os intelectuais comunistas e o exemplo – e legado – de José Saramago
Os livros de José Saramago suscitam a reflexão sobre o mundo e a sua necessária transformação
Para os comunistas, a Cultura não se esgota nas fronteiras da «cultura artística». É, sim, um factor de emancipação humana e conquista da liberdade. No Programa do PCP, é uma das quatro componentes da democracia, a par das dimensões política, económica e social.
Na intervenção que proferiu na conferência do passado sábado, Jorge Pires, da Comissão Política, recorda uma luta que vem desde a fundação do Partido e que hoje tem na concretização de um Serviço Público de Cultura um objectivo geral e mobilizador. Este é, precisou, um «elemento central de responsabilização do Estado pelo desenvolvimento, democratização e liberdade cultural, construção do projecto de Abril a que a Constituição da República dá corpo». Trata-se, acrescentou, de criar as «condições materiais e espirituais indispensáveis ao desenvolvimento da criação, produção, difusão e criação culturais, com a rejeição da sua subordinação a critérios mercantilistas e no respeito pela controvérsia científica e pela pluralidade das acções estéticas».
O Partido, afirmou Álvaro Cunhal ali citado por Jorge Pires, «diz ao artista que descubra e use a sua própria linguagem. Apenas um justo desejo que a sua obra, além da emoção estética, insira sentimentos conformes à luta pela cultura, à luta pela liberdade, à luta pela democracia (…). E contribua para criar determinação e confiança».
Valorizando o contributo dos intelectuais comunistas na luta pelo derrubamento do fascismo e pela conquista da democracia e da liberdade, Jorge Pires destacou a «intervenção notável» de José Saramago, tanto pela sua extraordinária obra literária como pelo contributo que deu a essa luta.
Antifascista, jornalista, historiador
O também escritor Modesto Navarro destacou precisamente essa vertente da vida de José Saramago, que acompanhou de perto – a de resistente antifascista que se fez militante comunista. A participação na campanha eleitoral de Norton de Matos, a luta contra a guerra do Vietname, as comissões democráticas eleitorais, a organização associativa – e política – dos escritores, a criação de bibliotecas populares, o III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, a solidariedade com a Reforma Agrária – em tudo isto José Saramago esteve empenhadamente envolvido.
Já Alfredo Maia, jornalista e deputado do PCP, realçou a actividade jornalística de José Saramago, em crónicas publicadas n’ A Capital, no Jornal do Fundão e no Diário de Lisboa, algumas das quais foram mais tarde compiladas em livros. Em 1998, reflectindo sobre esses tempos, Saramago anotou num dos Cadernos de Lanzarote: «Como jornalista, ou simples colaborador soube o que era a indignação de ver esfaqueadas palavras que escrevi e ideias que expressei.» Como sublinharia Alfredo Maia, tratava-se «de uma consciência antiga, de um percurso de resistente, de intervenção e luta concreta».
Nos seus livros, Saramago demonstra o seu olhar sobre a história, realçou o professor universitário João Luís Lisboa, destacando a sua formação cultural, «sob forte influência francesa, misto de história social marxista e de nova história cultural e das mentalidades». As personagens populares de José Saramago, acrescenta, são «agentes históricos, no sentido de protagonistas, mas também de agentes de intervenção, sejam personagens individuais e personagens colectivas». Tal como o historiador, também o romancista questiona «uma humanidade em movimento», de que ele próprio faz parte.
Crítica transformadora
A professora universitária Carina Infante do Carmo, abordando a conquista da notoriedade de José Saramago, com a obra Memorial do Convento, que considera «um meridiano na sua trajectória de escritor». Até esse livro, editado em 1982, o próprio Saramago considerava que «tinha livros, mas não tinha uma obra. Tinha livros, mas não era um escritor». As suas declarações a propósito deste livro, e de si próprio como autor, trouxeram consigo «um entendimento estruturante e desafiador sobre o romance, sobre a obra até então publicada e até sobre a tradição literária em que se inscreve», acrescentou Carina do Carmo.
Dos romances para o teatro, Maria João Brilhante, professora aposentada na Faculdade de Letras de Lisboa, referiu-se a três das cinco obras dramáticas de José Saramago: A Noite, Que Farei com Este Livro? e A segunda vida de Francisco de Assis. Esta componente da sua obra literária, «secundarizada perante o lugar central da sua obra romanesca na literatura universal», é mais importante do que pode parecer. É que o teatro, lembrou, «é um lugar onde (…) é possível discutir todas as questões que interessam ao povo, onde momentos da história de Portugal podem ter interpretações diferentes da história oficial».
Catarina Menor, estudante e dirigente da Juventude Comunista Portuguesa, falou das obras de José Saramago que estudou na escola – A Maior Flor do Mundo, o Conto da Ilha Desconhecida e Memorial do Convento – e na forma como são estudadas: não enquanto crítica, sem reconhecer a presença dos ideais do autor na sua escrita, como algo que não é fácil nem acessível. Contudo, valorizou, são cada vez mais os jovens que reconhecem o «papel crítico que José Saramago teve» e se revêem na sua postura crítica e transformadora.
De muitas lutas se faz uma Obra
Afirmou Jerónimo de Sousa na abertura da conferência (ver páginas 16 e 17) que na obra de José Saramago está presente o seu «penetrante olhar sensível e profundamente humano» sobre a vida dos homens e os males do mundo. Nela transparece também a vontade do autor – expressa nas diversas facetas da sua vida – de transformar a realidade. Várias intervenções debruçaram-se precisamente sobre as causas – ou os combates – presentes na obra de Saramago.
A deputada comunista no Parlamento Europeu, Sandra Pereira, reflectiu sobre a forma como José Saramago aborda a temática da soberania nacional, partindo de dois dos seus livros: A História do Cerco de Lisboa e Jangada de Pedra, publicados ambos na segunda metade da década de 1980. As duas obras partem de um «contexto ou momento históricos que são alterados pelo autor, criando uma narrativa paralela em que o povo português assume as rédeas do seu destino». A ousadia proposta nos dois textos é tão só, garantiu, «a audácia de nós, enquanto país, tomarmos nas mãos o nosso destino».
Já João Pimenta Lopes, eleito no mesmo órgão e membro do Comité Central do PCP, partiu de A Caverna para abordar as questões da liberdade, da independência e do capitalismo. Tal como as personagens do romance, «somos nós próprios que ali estamos. Presos, amarrados, inutilizados, mumificados, descartáveis, formatados, por um capitalismo que procura por todas as formas manter oprimida uma ampla maioria». Saramago expõe, ali, a sua visão marxista, «no caminho da tomada de consciência que permita romper com a exploração do homem pelo homem, escapando à “Caverna” que nos oprime».
Por outro lado, o escritor e encenador Domingos Lobo referiu-se ao poder e à violência na obra Ensaio sobre a Cegueira, onde está presente «o perigo, a vileza do mal, o mal extremo porque exercido sobre criaturas que vivem a mesma condição», e o poder, «primitivo e mesquinho, porém de uma sordidez absoluta e degradante». É a própria luta de classes que é ali encenada, conclui, apelando à vigilância constante: «Olhar e ver, diz-nos Saramago, como condição essencial para entender o mundo, e entendendo, poder mudá-lo.»
Humanismo e resistência
O Ano da Morte de Ricardo Reis foi o tema da intervenção da escritora Ana Margarida de Carvalho. O ponto de partida foi o célebre verso deste heterónimo de Pessoa, Sábio é aquele que se contenta com o espectáculo do mundo, uma «ideia medonha de indiferença, de marasmo». Ora, lembrou, em 1936, ano em que se desenrola a narrativa, era impossível ficar a contemplar passivamente o «espectáculo do mundo»: é o ano da revolta dos marinheiros, da guerra civil de Espanha, do expansionismo nazi-fascista.
José António Gomes, também ele escritor e professor universitário, falou de Levantado do Chão, essa epopeia do «sofredor e corajoso» povo alentejano, em luta pelo trabalho, pela liberdade – pela dignidade. A história do livro, como da região que descreve, é de «exploração desenfreada a raiar a escravidão, de fome e de miséria; história de uma luta pela sobrevivência e de resistência dos mais comuns da terra e do seu combate à opressão perpetrada por um sistema fundiário iníquo – o latifúndio, e por um sistema socio-económico de injustiça social gritante – o capitalismo, sustentado no fascismo salazarista».
Abordando as questões da religião e dos valores humanistas, a partir de O Evangelho segundo Jesus Cristo, Edgar Silva, mestre em Teologia e dirigente do PCP, refere-se a alguém que, sendo ateu, é «apegado à ideia de Deus». Ao mesmo tempo que, em defesa da humanidade, Saramago «rejeita o Deus cruel, sanguinário, vingativo», destaca a «figura humana, demasiado humana, de Jesus». Ou seja, conclui, rejeita Deus para exaltar, «na figura de Jesus, a figura humana, o homem e a sua dor, o homem e a sua revolta».
Da mulher na obra de Saramago falou Isabel Araújo Branco, professora universitária. Destacando o protagonismo dado pelo autor às figuras femininas, sublinhou tratar-se em alguns casos de «mulheres trabalhadoras, que têm ou vão ganhando consciência de classe e, através dela e das estruturas organizativas em que acabam por se inserir, intervêm na tentativa de redesenhar a sociedade de acordo com as suas vidas e necessidades concretas». Saramago não exalta o feminismo das classes média e alta, mas o das classes trabalhadoras, na linha do pensamento de Clara Kzetkin.
Mensagens e recordações
Não só da tribuna se falou de Saramago, da sua obra, dos seus valores. Pilar del Rio, que foi sua companheira e preside hoje à Fundação que tem o seu nome, partilhou com os presentes uma mensagem em vídeo, na qual valorizou – e agradeceu – a realização da conferência e os seus objectivos. Não podendo estar presente por se encontrar fora do País, a divulgar a obra de Saramago, apelou a que se prossiga o estudo do seu legado, não só literário como de defesa dos mais elementares direitos humanos.
Seria ainda emitido um filme sobre a atribuição, em 1998, do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, com vários depoimentos a realçar a qualidade e perenidade da sua obra e das importantes reflexões que suscita.